Fez bem o governo em aprovar e publicar em 2 de julho princípios e normas a que deve obedecer a organização da administração direta do Estado, a orgânica da Secretaria-Geral do Governo e o modelo organizativo a adotar pelas entidades com responsabilidade em matéria de estudos e planeamento, no âmbito da reforma da administração central do Estado. Fez bem, porque assume a necessidade da reforma, porque lança o processo, porque transforma a concentração física dos serviços numa oportunidade única para ganhar eficiência e, principalmente, porque o faz com base num projeto bem sustentado e desenvolvido pelo governo anterior (DL43-A e B/2024).

Esta última razão importa porque o cumprimento dos propósitos fixados recomenda a continuação do envolvimento do principal partido da oposição, que lhe irá suceder um dia, e lidar então com a administração reorganizada, e ainda porque poderia assim a reforma incidir também em matérias da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, regime e âmbito da função pública. Ganharia assim a reforma da administração, uma vez que está em causa a revisão e reorganização da instituição do Estado cujas funções estão, nos termos da Constituição (n.2 art. 266) exclusivamente ao serviço do interesse público, funções que devem ser desempenhadas com imparcialidade (n.1 art. 269) e usando competências próprias e outras delegadas, sendo através dela administração, que o governo exerce o poder executivo.

O governo lançou o processo. Todos temos a ver com ele. O que se passa com a administração conta para evoluir na qualidade da nossa democracia. Vejamos.

A turbulência que verificamos na esfera partidária, em Portugal e nas democracias ocidentais, com a dificuldade inerente às democracias de formar maiorias de governação em ambientes agitados e de grandes riscos e incertezas, a par da radicalização política, das guerras e das alterações climáticas, parece recomendar discernimento e capacidade acrescida de resposta por parte das instituições do Estado cujas atribuições preveem precisamente distanciamento e neutralidade relativamente aos necessários arranjos políticos e interesses privados. São os Tribunais como órgão de soberania, mas também a administração, as forças armadas, as de segurança, o Ministério Público. Impõe-se a revalorização social e política das profissões e carreiras profissionais nestas instituições e o reconhecimento do mérito, mas também o escrutínio das suas atividades, onde é suposto aceitar-se a mitigação do exercício de determinados direitos cívicos como requisito de neutralidade indispensável ao avanço da nossa vida coletiva.

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A tabela de Furth e Faber citada por Daniel Innerarity em Uma Teoria da Democracia Complexa (Ideias de Ler – Porto Editora, p. 84) ajuda a discriminar a complexidade do que está em causa, por os problemas resultarem de interações entre múltiplos sistemas, por terem esses problemas de ser geridos também como um sistema, por não se estabilizarem automaticamente e por não poderem ser resolvidos definitivamente. O relacionamento entre o governo e a administração tem tudo a ver com problemas complexos. E a indispensável reforma da administração, para responder aos desafios e circunstâncias nacionais e internacionais, tem de ser feita de forma abrangente e interligada. Os problemas de degradação de competências e de ineficácia, bem como as acusações de partidarização ou de falta de confiança não são suscetíveis de resolução numa abordagem do tipo peça a peça, nem de alcançar um nível de resolução com suficiente contraste, mesmo com tão relevantes medidas como a de estruturação do centro do governo e o modelo organizativo para os estudos, planeamento e avaliação de políticas. Já com a figura de Secretário-Geral do Governo e o Forum da Administração Pública, falham intencionalmente atribuições de governança da administração em matéria orçamental e de SIADAP.

Publicado com data de 10 de julho o OECD Survey on Drivers of Trust in Public Institutions 2024 – Results dá conta de que 32% dos portugueses em 2023, ano com eleições legislativas antecipadas entre nós, atribuem alta ou moderadamente alta confiança no governo, o que compara com 39 % da média na OCDE. Isso representa uma baixa de 9 pontos relativamente a 2021 e 2,9 pontos com referência à média da OCDE (18 países com dados comparáveis). Como em muitos países da OCDE a confiança nas polícias e nos tribunais é superior. Mesmo para a administração (national civil service) foram obtidos 43% para o mesmo indicador, para os partidos políticos 18% e para o parlamento 31%. Porém, a respeito da perceção de integridade dos trabalhadores da administração, que já é baixa em muitos países, em Portugal só 23 % esperam que se recuse suborno para acelerar o acesso aos serviços. Só 24% da população acredita que o sistema político lhe permite ter voz na governação, e isso representa 6 pontos abaixo da média verificada nos países da OCDE.

Assim, por muito relevantes que sejam os passos que estão a ser dados, e são-no de facto, o que importa ainda fazer: em matéria financeira, com o sistema de normalização da contabilidade e a lei de enquadramento orçamental; em matéria de recrutamento e seleção para a administração, com a CRESAP, o reconhecimento do mérito e a recomendada suspensão de militância partidária no caso dos dirigentes de topo da administração; ao nível organizativo, com os sistemas de informação do Estado e com a necessária estruturação e consolidação de um órgão de chefia da administração pública subordinado ao governo, que assegure a continuidade através de mandatos desencontrados, promova a transparência, a capacitação técnica e a gestão dos ativos públicos tangíveis e intangíveis; por tudo isto que importa ainda fazer, não parece crível que a governança da administração ganhe já consistência, razões e ânimo para se requalificar e tenha incentivo para o fazer.

O governo lançou o processo. Todos temos a ver com ele. O que se passa com a administração conta para evoluir na qualidade da nossa democracia.

julho 2024