Stanley Kubrick (1928-1999) é um dos mais extraordinários criadores do século XX. Digo criadores em vez de realizadores porque num tempo de decadência e cancelamento culturais, em que a imaginação e a criação que dela resulta vão sendo cada vez mais raras, Kubrick aparece como um grande inovador e criador.

E viveu e trabalhou em plena segunda metade do século XX, onde não faltaram, no cinema, grandes inovadores e criadores: na Anglo-América – Orson Welles, Elia Kazan, John Huston, Alfred Hitchcock, Billly Wilder, John Ford, Brian de Palma – e no resto do mundo – Serguei Eisenstein, Luis Buñuel, Federico Fellinni, Luchino Visconti, Akira Kurosawa, Werner Herzog, Jean Renoir, René Clément, Jean Luc Godard, Pedro Almodovar. E muitos outros admiráveis “caçadores de imagens” que deixo de fora mas a quem agradeço milhares de horas de sonho e de luz.

Em quase cinquenta anos de carreira e depois de um início de film noir, Kubrick realizou uma série de filmes magistrais sobre os grandes temas da Humanidade e da América, começando por duas fitas protagonizadas por Kirk Douglas – Paths of Glory (1957) e Spartakus (1960).

Como com Kubrick a verdade das coisas se impõe ao resto, Paths of Glory é um filme antimilitarista, numa época em que contestar o establishment militar não estava muito na moda, que sublinha a estupidez cínica dos altos comandos que ganham promoções e condecorações à custa de massacres da sua própria tropa. E Spartakus é uma ilustração do pensamento nietzschiano de que a revolta é a nobreza do escravo.

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Em 1962, faz a adaptação de Lolita, o livro-escândalo de Nabokov, num filme de culto com James Mason, Shelley Winters, Sue Lyon e Peter Sellers. Depois, vem a charge à Guerra Fria, em Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, com Sellers, George C. Scott e Sterling Hayden.

Em 1968 2001 Odisseia no Espaço, em 71 Laranja Mecânica, em 75 Barry Lindon e em 1980 um filme de terror, The Shining, a partir do thriller de Stephen King. O Vietname de Kubrick ficou em Full Metal Jacket. Pelo meio deixou de parte projectos avançados sobre o Holocausto e Napoleão. No fim fez a sátira social Eyes Wide Shut, com Nicole Kidman e Tom Cruise, que estreou postumamente. É toda uma obra invulgarmente original e variada na sua universalidade.

O mecanismo da laranja

A Clockwork Orange, A Laranja Mecânica, foi apresentado em Nova Iorque, em 19 de Dezembro de 1971, inspirado no romance distópico de Anthony Burguess, de 1962. Numa Inglaterra futura, Alex Delarge lidera um quatuorde delinquentes juvenis – Dim, Georgie, Pete e o próprio Alex. São violentos, roubam, assaltam, agridem, violam, matam. A deles, é uma violência gratuita, cobarde, sem riscos. Nas suas andanças, assaltam a casa de campo de um escritor, Mr. Alexander e espancam-no e violam e matam-lhe a mulher, ao som de Singing in the Rain.

Alex, magnificamente interpretado por Malcolm McDowell, gosta especialmente de Beethoven e particularmente da Nona Sinfonia e gosta de temperar sadicamente o mal que faz com a harmonia da música.

Mas depois do crime vem o castigo: Alex entra em ruptura com os cúmplices, que o traem e entregam, é preso, julgado e condenado por homicídio. Ao fim de dois anos de cárcere, voluntaria-se para uma experiência de “aversion therapy”, um sofisticado processo pavloviano que associa sensações desagradáveis a práticas de violência. O condenado Alex vê projectadas no écran cenas de sexo e de brutalidade ao som de Beethoven, enquanto lhe injectam doses de mal-estar. Assim, vai ficando pacífico e impotente até terminar com sucesso a sua “reeducação” de duas semanas, para grande satisfação do Ministro do Interior.

É então posto em liberdade, mas está na miséria; e aqueles a quem prejudicou vão vingar-se. É atacado por mendigos, leva uma sova de Dim e Georgie, que, entretanto, ingressaram na Polícia, e acaba descoberto e punido por Mr. Alexander, o escritor agredido, que está agora numa cadeira de rodas mas que, com a ajuda de amigos, o tortura ao som da Nona Sinfonia. Alex tenta suicidar-se, mas acaba por ficar a trabalhar para o Ministro, na campanha eleitoral, como testemunha-cartaz dos admiráveis feitos da Ciência e efeitos da reeducação médica dos criminosos.

“A voz do Fascismo”

Assim se fecha o ciclo da brutalidade, o crime e castigo segundo Burgess e Kubrick. O filme estreava num tempo de revolta juvenil e de libertarianismo de costumes, um tempo que sucedia aos quietos anos cinquenta. A partir dessa sua trágica opera-bufa, Kubrick retratava a violência dos gangues que queimavam os “sem-abrigo”, macaqueavam orgias romanas e se excitavam e entorpeciam nos paraísos artificiais das drogas. Um mundo tão verdadeiro como o dos políticos corruptos, dos consultores de comunicação enervados, do “recurso à ciência” para fins eleitorais ou de “reeducação”.

Um mundo longe do mundo imaginário de paz e amor cantado, também nesse ano de 1971, por John Lennon (que, de resto, definiria o seu Imagine como uma espécie de “sugar coated communist manifesto”). Talvez por isso A Laranja Mecânica tenha sido objecto da crítica de Fred Hechinger no New York Times, que, em 13 de Fevereiro de 1972, escrevia contra Kubrick:

“Um liberal atento deve reconhecer a voz do fascismo (…) E a tese de que o homem é irremediavelmente corrupto é a essência do fascismo”.

As acusações de Hechinger tiveram, duas semanas depois, a resposta de Kubrick, que contestava que o seu filme fosse uma “apologia anti-liberal e de totalitarismo niilista”. Nessa longa carta, Kubrick, citando a sua observação da História e a teologia cristã, negava a narrativa do homem como naturalmente bom, como um bom selvagem corrompido pela sociedade, pelo poder organizado, pela propriedade, pela religião. Mas acrescentava que o seu pessimismo antropológico, ou o seu realismo, não fazia dele um tirano ou um fascista.

Depois, a propósito da terapia prisional aplicada a Alex, sublinhava que a terapia nunca poderia ser redentora porque suprimia a vontade e a livre escolha, transformando a sociedade numa sociedade de laranjas mecânicas.

E, sem medo, escrevia:

“O homem não é um nobre selvagem, é um selvagem ignóbil. É irracional, brutal, fraco, estúpido, incapaz de ser objectivo em causa própria ou quando se jogam os seus interesses … E qualquer tentativa de criar instituições sociais baseadas na visão falsa da natureza do homem, estará condenada ao fracasso.”

E concluía:

“A falácia romântica de Rousseau, de que é a sociedade que corrompe o homem e não o homem que corrompe a sociedade, coloca uma cortina lisonjeira entre nós e a realidade”.

Para Kubrick, Rousseau substituíra o Deus transcendente e a sua religião pelo culto do homem naturalmente bom. E citava o antropólogo Robert Ardrey, o “autor maldito” de The Social Contract e African Genesis, lembrando que, mais que anjos caídos, nós, os seres humanos, éramos, ou também éramos, macacos levantados do chão, com todos os instintos dos hominídeos – de identidade, de território, de defesa do grupo. E capazes de matar por eles.

Rousseau e os Talibãs

Reagindo ao radical pessimismo de Kubrick e Ardrey, diria que oscilamos entre o anjo e a besta – mas que esquecer a besta nos leva quase sempre ao menos angelical dos mundos.

Li agora nos “Arquivos” de Kubrick, editados por Alison Castle, esta polémica no New York Times. Li-a neste preciso momento, em que vemos e vivemos de perto um mundo devastado e amedrontado pela pandemia, pelos feitos dos bons selvagens talibãs em Cabul e do jihadismo no Norte de Moçambique ou no Sahel e até nas cidades de França. Um mundo em que centenas de milhões de seres humanos continuam a viver na fome, na miséria, dominados pelas tiranias mais diversas, vítimas do crime organizado e da exploração em infinitas formas.

E, no entanto, neste mesmo mundo, o discurso oficial das grandes organizações internacionais e multilaterais continua a ser a versão revista, aumentada e requintada da cartilha de Rousseau, presente nos estatutos, nas declarações, nas resoluções, nas convenções destes respeitabilíssimos areópagos da Humanidade. Areópagos que preferem falar do tempo, das ameaças climáticas, por mais reais e por mais estridentemente anunciadas pela pequena profeta sueca que sejam. Ou então de novos e também verdes e floridos “direitos humanos”, para selvagens cada vez melhores e mais nobres e mais angelicais. Ou da protecção dos dóceis animais, que até tiveram prioridade sobre as pessoas num voo de Cabul para Londres.

E para tudo isto preparam-se agendas especiais, cancelam-se e proíbem-se autores, práticas culturais, modos de vida. E destroem-se estátuas, mudam-se nomes de ruas e universidades, criam-se leis especiais para os “discurso de ódio” e impõe-se o terror e a morte moral dos dissidentes.

A nova Inquisição segue os passos do Sr. Hechinger, esse “liberal atento”, que viu o ovo da serpente, ou o fascismo palpitante na Laranja Mecânica e no pessimismo antropológico de Kubrick. Se fosse hoje Hollywood proibia-o. Talvez ainda o venha a fazer. Também depende de nós deixar que o faça ou que o façam.