É da praxe quando se vai à missa (nas poucas vezes que tive de ir) dizer-se em determinado momento da homilia: “(…) O Senhor está no meio de nós.”. Nunca o senti no meu meio, mas não é disso que queremos tratar por ora. Antes, porém, algo que sim, tem estado muito presente, intensivamente e no meio de nós: o tema do aborto. Publicou-se o livro “Identidade e Família” – que já li, numa livraria, apressadamente, sem sequer o comprar por não valer a pena – e caiu “o Carmo e a Trindade”. Numa apresentação claramente desastrosa, pelo discurso inflamador que suscitou junto da opinião pública, e também numa aparição nas televisões claramente suicida, a sociedade civil depressa se mobilizou de forma generalizada por meio das redes sociais para manifestar o seu desagrado, e também ofender muito dos intervenientes neste processo. Onde residirá a razão? É o que procuraremos evidenciar.
Sou ateu, e um conservador-liberal, por isso já fiz a priori a minha declaração de interesses. Não obstante, sendo também um grande adepto da mínima restrição dos direitos fundamentais, e por isso, a favor da concretização do princípio da liberdade geral de acção do indivíduo, não deixo de notar que neste tema temos de reforçar a nossa diligência e protecção sobre os bens jurídicos envolvidos.
Estão aqui em causa dois direitos conflituantes, o direito à vida do nascituro, e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade da gestante. Havendo por isso uma situação de conflitos de direitos, há que harmonizar e ponderar no sentido de compatibilizar o exercício de ambos os direitos. O direito à vida do nascituro implicaria a impossibilidade fáctica de administrar algum procedimento que provocasse o evento morte do mesmo; e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade da gestante, dar-lhe-ia possibilidade de dirimir de forma livre sobre o seu projecto de vida, e família, sem qualquer restrição nesse domínio. Acontece, porém, que para o nascituro nascer sempre, pode muitas das vezes implicar para a gestante, um grande sacrifício, e por outro lado, para a gestante poder pôr e dispor do seu corpo, o nascituro seria tratado como uma coisa que é sua, e somente sua.
Ora estas posições são evidentemente radicais. Se por um lado se sobrevaloriza o livre desenvolvimento da personalidade, pelo outro se obnubila o direito à vida e vice-versa.
Como devemos então compatibilizar estes direitos? Desde logo, em nossa opinião, garantindo o direito à liberdade sexual dos indivíduos de forma plena, isto é, não obrigando ninguém, sem o seu consentimento prévio e esclarecido, a ser investido na posição de gestante, e a avançar com um projecto de família. Se uma mulher não quer ser mãe, tem direito a seguir esse projecto de vida, faz parte da sua liberdade geral de acção. Significa isto, que nas situações que a mulher é violada, ou então depara-se com um nascituro com alguma deficiência ou que lhe pode causar a sua própria morte, deve poder ter direito a reflectir se quer ou não avançar com aquele projecto de vida, uma vez que se no primeiro exemplo não escolheu de forma alguma ser mãe, no segundo exemplo terá também querido ser mãe de uma criança, mas houve uma clara frustração das expectativas criadas, o que é legitimo tutelar.
Não deve, no entanto, naturalmente depois da prática do acto de concepção considerar-se legitima a decisão de querer abortar, porque isso configuraria o exercício de uma posição manifestamente ilegítima. Seria uma concessão da prevalência do direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade sobre o direito à vida, de uma maneira injustificada.
Os indivíduos têm que naturalmente ser responsabilizados pelos seus actos. Não se trata de forma alguma de limitar a liberdade sexual da mulher. Ela poderá continuar a ter uma vida sexual activa, nos dias que correm, utilizando os diversos métodos contraceptivos à sua disposição. Agora, se no dia X, decidiu avançar com um projecto de família, não será pelo contratempo Y, que poderá retroceder nessa decisão, porque isso implicaria tão somente uma morte, uma negação do direito à vida, a alguém que nem sequer escolheu nascer, de forma completamente arbitrária, e como se de um pertence da mulher se tratasse. Numa civilização que consagra a dignidade da pessoa humana, como a pedra angular da sociedade organizada, tal legitimação de acção consubstanciaria na objetificação do ser humano em detrimento da vontade doutro ser. E isso, naturalmente que não é tolerável, e a ordem jurídico-constitucional tem de pugnar pela construção de instrumentos que garantam a protecção do bem jurídico em causa.
Esta posição que acabámos de expressar de forma muito sintética e simples, traduz-se na ideia geral de que deve ser reconhecido o direito ao aborto, mas de forma muito restrita e estritamente necessária, para também garantir o direito à vida. Assim conciliamos e tutelamos as duas posições que são aprioristicamente antagónicas. É essa a nossa função, dos defensores de um Estado de Direito Democrático de matriz ocidental, apesar de não ser isso aquilo a que temos assistido. Se por um lado, vemos, ouvimos e lemos, nestes últimos dias opiniões assentes estritamente nos dogmas do catolicismo romano pré-1962 (XXI Concílio Ecumênico da Igreja Católica), por outro assistimos à objetificação dos nascituros de uma forma sem precedentes. O radicalismo nestes debates é o maior inimigo da razão. E por isso as suas ideias devem ser atempadamente expurgadas e denunciadas.
Assim, em jeito de peroração assistimos mais uma vez em democracia ao fenómeno da bipolarização, agora entre os “fascistas” e os “anti-fascistas”. Há que parar para pensar e reflectir, ainda que por breves momentos: Mas afinal onde residirá a razão? Nós cremos que é aqui. É o que se entende.