Inauguraram-se novos tempos na política portuguesa. Augusto Santos Silva será o pai da autopoiese política. O termo conhecia, até então, definições nas áreas da biologia, da sociologia e da filosofia. Nunca na política. Teria que ser um português. Só um português seria capaz de redefinir o seu esqueleto, colando a coluna vertebral aos pés e o cérebro à anca para garantir a sua subsistência no meio, quando as condições exógenas lhe são adversas. A autopoiese mais não é do que um sistema isolado construído pelos componentes que o próprio cria, num processo de auto-preservação e numa rede de interacção circular e recursiva.

Confuso? Passemos a explicar:

Se até hoje todos pensávamos que as leis eram para cumprir, fruto da sua generalidade e abstracção, estávamos todos errados. A lei é como o absurdo, é à la carte. Só se cumpre quando dá jeito…

Sócrates, que não o filósofo, testou: “Pagar a dívida é ideia de criança”; Ferro, que não o central, validou: “Tou-me cagando para o segredo de justiça” e Santos Silva, que não o antifascista, postulou: “Seria um absurdo uma interpretação literal da lei”.

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Candidato ao Guiness pelo contorcionismo ideológico, estribou o argumentário na falta de clareza do diploma legal, o que não deixa de ser estranho já que a redacção actual (proposta pelo BE), foi aprovada em plenário sem qualquer voto contra. Mais estranho ainda quando, à data, era Ministro dos Assuntos Parlamentares. Não achou, nem ele nem ninguém, que a lei fosse pouco clara. E é fácil perceber porquê. Estão em causa apenas dois artigos da lei: o 8º, que define o regime das incompatibilidades entre os titulares de um cargo político ou de soberania, que detenham (eles, o cônjuge, ascendentes, descendentes ou colaterais até ao 2º grau) percentagem superior a 10% de uma sociedade e a realização de negócios entre essas sociedades e o Estado; e o 10º, que prevê a demissão do titular do cargo, nesses casos.

Mais: os lentes em direito constitucional já vieram a terreiro dizer que tais contratos são nulos e podem implicar a restituição das verbas comunitárias.

Clarinho e transparente como a água…

Surge, porém, um problema: fazer cumprir a lei implicaria que Artur Neves se demitisse (e não que pusesse o lugar à disposição), mas também levantaria o véu sobre as relações entre o pai do ministro Pedro Nuno Santos, o marido da ministra Francisca Van Dunem e os pais e irmão da ministra Graça Fonseca. Começa a ser muita gente. Começa a ser preocupante. Começa a ser um problema.

Há um elefante na sala!

Para lá da solução óbvia – fechar a porta e esconder o elefante dos olhares, haveria uma outra, bem mais criativa: chamava-se a Joana Vasconcelos, ela cunharia o elefante de instalação e o povo seguiria a sua vidinha, feliz e contente, ainda pagando ingresso para ver o gigante mamífero. Augusto Santos Silva vê mais longe — deixa o elefante na sala e pergunta: “Será que isto é mesmo um elefante? Não é claro que seja! O melhor é chamar especialistas para se pronunciarem quanto à filologia do animal em questão”. O povo delira, faz filas, alvitra elefantes, mamutes, mastodontes, mutantes e até transgéneros mammalius e segue a sua vidinha, feliz e contente, pagando ingresso. Poupou-se a alvissara da artista e a crítica à arte em causa. A cada um o seu juízo. A cada um o seu palpite, como se fossem parte integrante do espectáculo.

Não discutimos o óbvio. Não discutimos a ética. Não discutimos a lei. Discutimos opiniões. Discutimos as nossas crenças, as nossas paixões. É de génio, há que reconhecer.

Agora experimentem fazer o mesmo quando a polícia vos mandar parar por excesso de velocidade ou quando for necessário pagar um imposto: “Ah e tal… a lei não é clara! Vou pedir um parecer e depois decido se pago”.

Querias, não querias?

É que quando o elefante é teu, é sempre um elefante…

Advogado