A educação consiste, perante um pendor mais antropológico, numa “realidade complexa de práticas e de processos mediante os quais o educando se transforma (…) em ordem a um desenvolvimento que se pretenda integral” (Boavida, & Amado, 2006). Nesta perspetiva, ela não se pode coibir de formar indivíduos que, mais do que apenas alunos, estudantes ou discentes, sejam cidadãos reflexivos, críticos e interventivos na realidade social. Tal passa por possibilitar que as crianças e os jovens consigam apropriar, num quadro de criatividade e de iniciativa próprias, os saberes, as estruturas e as relações (com) que moldam as suas trajetórias ao longo da sua existência como pessoas, potenciando a partilha de conhecimentos e a convivência democrática sem receitas comportamentais ou atitudinais prescritivas (Trindade, & Cosme, 2004).

Ora, nada disto é viável sem o reconhecimento do papel fundamental da escola na qualificação dos alunos para os valores, atitudes e competências sociocontextualizados mediante as aprendizagens do passado – um passado nacional, supranacional e internacional, cultural e territorial – e os riscos e desafios de um presente século XXI que sofre mutações cada vez mais rápidas (Martins, 2017). Deste modo, a escola elabora discursos científicos sobre o político, nomeadamente através da clarificação de linguagens e ideias relacionadas com o espetro partidário, a intervenção estatal ou a justiça (Correia, 2001), não dispensando, todavia, as narrativas políticas sobre o científico, num apelo a um pensamento mais alargado acerca dos impactos da própria ciência no mundo, e as narrativas sobre si mesma (enquanto lugar da sociedade e na sociedade).

Na medida em que a escola constrói e reconstrói discursos acerca da sua instituição, da educação no âmbito mais genérico e do próprio modelo de democracia, ela também se envolve na multiplicidade de cidadanias que os estudantes fabricam, as quais percorrem motes que vão do género à etnia e do ambiente ao corpo e à orientação sexual. Sendo a cidadania um resultado, mas igualmente uma prática em que os atores sociais se afirmam, pública e politicamente, moldam as suas identidades e encetam mudanças sociais, ela adquire uma dimensão de projeto de reconhecimento mútuo das alteridades e de transformação do mundo (Stoer, & Magalhães, 2005; Lawy, & Biesta, 2010). É a cidadania que, por exemplo, nos alerta para o paradoxo da democracia, ou seja, para o argumento de que “enquanto a democracia se está a expandir por toda a parte, (…) nas democracias maduras, que o resto do mundo está supostamente a copiar, existe uma enorme desilusão quanto aos processos democráticos” (Giddens, 2017, p. 70); é ela também que, em consequência, permite verificar um aumento da participação cívica e política dos jovens através de canais e modos menos tradicionais e convencionais (Menezes et al., 2012).

Perante isto, há também que atender à produção de cidadania fora dos muros da escola (Ferreira, et al., 2013). O facto de o ofício do aluno se moldar “na consolidação das tendências onde ele deixa de ser estudante – alguém que está na escola – para passar a ser um trabalhador escolar, ou seja, alguém que vai à escola” (Correia, 1998, p. 114) possibilita que as crianças e os jovens arquitetem e consolidem a sua juventude através de atividades e grupos para lá da escola (Ferreira, 2020), formando culturas juvenis de recursos específicos e de um “espaço social próprio” (Pais, 1990, p. 142). Estas dimensões de existência e de (con)vivência da(s) cidadania(s) propiciam, pois, uma reconsideração da categoria clássica de aluno, mas também não deixam a categoria de professor indiferente, exigindo deste último uma gestão dos desafios levantados pelo primeiro. Na relação de ensino-aprendizagem, o professor, confrontando-se com estes novos pensares, sentires e agires, pode enveredar por diferentes vias para lidar com eles, estando sempre, no entanto, num dilema entre adotar o rigor que se impõe à transmissão de conhecimentos e assumir a ética e o espírito crítico subjacentes a uma docência que perspetiva uma realidade maior que a da sala de aula.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR