Nos últimos dias tornou a entrar na cena mediática o caso dos pais de Famalicão que proíbem os filhos, há já quatro anos letivos, de frequentarem as aulas da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento (CD). Sendo um problema de matriz socioeducativa e cultural, pareceu tão relevante para a minha formadora da Unidade de Formação de Curta Duração (UFCD) de Animação Sociocultural – Áreas de Intervenção discuti-la em aula que a trouxe para esse contexto esta semana, a partir de uma entrevista de cerca de 30 minutos dada pelo pai dos jovens ao Notícias Viriato. Acompanhando o debate da turma foram-me surgindo algumas questões e reflexões que passo agora a enunciar.

Qual é o perfil da família desta notícia?

É importante estarmos conscientes de que ninguém fala de um lugar branco. Todos declaramos as nossas opiniões e convicções com base nas nossas experiências e representações sociais, culturais, políticas e educativas, o que significa que as neutralidades argumentativas são inexistentes. Donde torna-se relevante analisar algumas características desta composição familiar para compreendermos as raízes dos seus pontos de vista.

Os pais têm seis filhos/as, sendo apenas uma delas uma rapariga. O que significa que, em oito membros, apenas dois (mãe e uma das filhas) é do sexo feminino. Se é certo que os progenitores não têm “culpa” de a maior parte dos filhos serem rapazes, estes já terão uma parte ativa no tipo de educação que querem transmitir à sua prole. Esta será, sem dúvida, suscetível à presença de uma grande dose de masculinidade, levando, em contrapartida, a uma dessensibilização face às preocupações femininas. Não é por acaso que pouco ou nada ouvimos da visão da mãe, assumindo-se que ambos os pais têm exatamente a mesma opinião e que o porta-voz precisa de ter uma entoação viril (daí o meu uso constante das expressões “pais” e “filhos” em exclusivo no masculino). Aliada a uma perspetiva conservadora que o “chefe de família” assume relativamente à organização do mundo, estamos perante uma barreira poderosa face às questões sociais progressistas.

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Como lidarão os miúdos com opiniões divergentes noutras situações e instituições sociais?

Por mais que o desejo destes pais seja proteger os filhos das visões doutrinárias da escola, e antes de discutirmos esse aspeto, há que entender que entrarmos em confronto com perspetivas distanciadas das nossas é um fenómeno completamente natural e frequente nas nossas (con)vivências em sociedade. Como, então, impedir estes dois jovens de, em contextos de trabalho, artísticos, de lazer, de namoro, entre inúmeros outros, encontrar pessoas com visões distintas das coisas? Serão os pais capazes de colocar os adolescentes numa esfera protegida de todas as malevolências do exterior?

Será incrivelmente difícil concretizar esta missão. Primeiro, porque as figuras paterna e materna não estarão presentes a cada minuto na vida dos filhos para controlar o que estes devem ou não ver, ouvir, ler, provar. Contudo, por outro lado, para que servirá efetivar esta proeza? Será positivo segregar criando ensejo para que, mais tarde, estes jovens não consigam gerir expectativas defraudadas e críticas? Não será melhor que os alunos identifiquem na escola um contexto pedagogicamente seguro para colocar, em sala de aula, diferentes ideias e crenças acerca de variados assuntos, podendo depois partilhar o que se aprendeu com as famílias e trazer novos conhecimentos? Afinal, de que têm medo estes pais quando, como dizia o professor João Teixeira Lopes nas minhas aulas de Sociologia, “um ponto de vista é [sempre e apenas] uma vista a partir de um ponto”, portanto, contextualizável e, naturalmente, debatível?

A escola é uma instituição ausente ou salvaguardada da sociedade? Qual é o papel da escola?

Com a intenção de retirar os filhos de lugares onde as suas visões – a dos pais – possa ser colocada em causa, estes também estão a remover a própria instituição escolar do seu merecido cosmos dentro da nossa sociedade. O que permite levantar uma interrogação de fundo: qual é o papel da escola para esta família? Ou, melhor, qual deve ser esse papel, que funções é que pode e deve ter? E até aonde pode ir para consumar essas mesmas funções?

Parece que não pode ir muito longe. Certamente estes pais considerarão que a escola deve formar cidadãos/ãs competentes, preparados/as para o futuro do mercado de trabalho e da vida em comunidade. No entanto, estes indivíduos não podem contactar com experiências desviantes que sirvam de preparação para esse futuro complexo, dinâmico, multidimensional, sempre em transformação. Apenas precisam de ganhar ferramentas alegadamente intemporais que não sofrem mudanças – o que é incompatível com as configurações da atualidade já mencionadas. Portanto, questiono: poderá a escola, não tendo liberdade para expor às/aos alunas/os temáticas diversas, mas somente aquelas que cada família eventualmente se lembrar de exigir, possibilitar que elas/es saibam viver segundo regras aplicadas para todas/os? Não se tornarão essas próprias regras à la carte?

A Cidadania e Desenvolvimento é a única disciplina na qual devem ser estudados temas ligados à cidadania e desenvolvimento?

Esta pergunta pode parecer redundante, não apenas por repetir as palavras “cidadania” e “desenvolvimento”, mas também devido a dois tipos de obviedade completamente opostos que dela podemos extrair. Para os pais destes adolescentes, esta é a única disciplina que parece tratar de temas ligados à nossa participação social e cívica, pelo que é a única que pode ser ideológica (para o bem e para o mal). As outras disciplinas merecem respeito porque estão fundamentadas cientificamente – apesar de as escolhas programáticas serem igualmente definidas pelo Estado – logo, a sua matéria não pode ser contestada. Porque, aparentemente, é universal em Português darmos determinadas/os autoras/es ou, em Matemática, abordarmos conteúdos mais abstratos ou mais ligados às programações informáticas; todavia, na CD, os pontos lecionados são simplesmente ideologia estatal, de esquerda, que prevaricam as mentes juvenis.

Ora, vejamos os domínios trabalhados em aula nesta disciplina: Direitos Humanos, Igualdade de Género, Interculturalidade, Desenvolvimento Sustentável, Educação Ambiental, Saúde, Sexualidade, Media, Instituições e participação democrática, Literacia financeira e educação para o consumo, Segurança rodoviária, Risco, Empreendedorismo, Mundo do Trabalho, Segurança, Defesa e Paz, Bem-estar animal, Voluntariado, Outras, “de acordo com as necessidades de educação para a cidadania diagnosticadas pela escola”. Todos estes temas são, de acordo com os pais, fruto de visões únicas e tendenciosas da sociedade e constituem uma “perda de tempo”. Mas repare-se naqueles conteúdos que causam “especiais preocupação e repúdio”: “Educação para a igualdade de género” e “Educação para a saúde e sexualidade”. Ou seja, estes pais poderão considerar que CD são obrigações que lhes competem e, portanto, a instituição escolar dedicar-se a elas acaba por retirar tempo às outras matérias (como se esta disciplina tivesse blocos temporais muito extensos a cada semana); porém, com as questões da sexualidade, da igualdade de género e da saúde, parece haver um conflito particular. Questiono as razões desse conflito e cruzo-as com o perfil conservador desta família, o que se traduz numa outra pergunta: haverá algum receio de que a escola desvirtue os seus filhos, removendo a sua heterossexualidade? Por outras palavras, e indo mais a fundo, existirá uma aversão com as expressões múltiplas de sexualidade, com a comunidade LGBTQ+ e, até, com a possibilidade de as mulheres terem os mesmos direitos do que os homens? Ora, defender estas posições por acaso se adequa com o perfil de um/a bom/boa cidadão/ã, com uma pessoa que é um ator social num planeta onde (felizmente) os direitos e as preocupações sociais tornam-se cada vez mais refletidos e prementes? Ou, como interpelo através do título deste artigo, a cidadania é somente medida de 0 a 5 (a partir de testes escritos e depósitos artificiais de memória)?

Esta discussão traz ao de cima velhas questões relacionadas com os direitos sociais?

Finalmente, recorrendo ao argumento dos direitos da última pergunta, conseguimos perceber que este caso levanta velhas questões relacionadas com o problema da institucionalização dos direitos sociais. Os direitos civis, relacionados com a liberdade de pensamento, de posse e de ação, são os mais próximos das liberdades naturais de que nós abdicamos a propósito do contrato social; os direitos sociais são mais complexos, construídos coletivamente, exigindo compreensão de que as desigualdades existem, dos grupos que sofrem mais com elas e de como apoiá-los é produzir uma arquitetura social mais diversa e resiliente, capaz de potenciar o bem-estar daqueles/as que a integram. Os pais destes jovens privilegiam muito mais os direitos civis, quase absolutizando a autodeterminação e o individualismo em detrimento da proteção social que sistemas como a educação e saúde conferem a todas/os as/os cidadãs/ãos. Não é aleatório o constrangimento criado pelas temáticas educativas e de saúde aos progenitores deste caso: exigem abdicação por parte de cada um/a de nós, o que alguém, no altar da sua riqueza e do seu poder, certamente não se sente tentado/a a ceder.

Numa perspetiva de transmissão em vez de coprodução ou cocriação de aprendizagens e conhecimentos, e de obediência unilateral (filhos em relação aos pais) ao invés de respeito mútuo, os direitos não passarão de meros estorvos a mundividências que selecionam seres humanos como úteis ou como inúteis. Consequentemente, a cidadania ascende como um atributo sem valor. Contudo, a meu ver, aplicar os conceitos de utilidade ou de utilitarismo a pessoas é retirar-lhes a condição de humanidade; é tornar direitos em mercadoria. Serão estes jovens e todas/os as/os outras/os cidadãs/ãos participativas/os, informadas/os e defensoras/es da democracia se considerarem que esta é simplesmente alguma coisa que deve ser vendida e, por isso, descartada por riqueza material?

Disse Paolo Mantegazza, neurologista e antropólogo italiano dos sécs. XIX e XX, que “o dinheiro é instrumento de felicidade, mas não é a felicidade”. O bem-estar e a cidadania são muito mais do que os euros na carteira ou as classificações no papel; são a consideração social e humana de quem possui essa mesma carteira e esse mesmo papel.