Tenho por hábito dedicar o pouco tempo que tenho para ler autores finados. Bem mortos, de preferência: a regra de ouro “pelo menos mortos há 50 anos” tem demonstrado ser a mais prudente. Tal como qualquer boa regra, esta também tem as suas excepções. Por vezes leio autores vivos, mas já em avançado estado de decomposição. Contudo, em 2020 quebrei todas as regras e li Susie Scott, uma socióloga que não só está viva, como é bastante jovem. Susie Scott dedica a sua investigação à “ “Sociology of Nothingness”. Nothingness remete, no contexto do trabalho de Scott, para o “vazio”, a “ausência”, o “nada”; para tudo aquilo que poderia ter ocorrido, mas não ocorreu; para os desejos que nunca acontecem, mas que podem condicionar aquilo que fazemos e somos.
O que Susie Scott nos diz, é que tudo aquilo que não ocorreu e tudo aquilo que nunca ocorrerá, têm tanto poder sobre nós como tudo aquilo que ocorreu e tudo aquilo que ocorrerá. A nossa vida é determinada não só pelas opções que tomámos, mas também pelas opções que não tomámos; não só por aquilo que sabemos, mas também por aquilo que ignoramos. No seu trabalho, Susie Scott fornece exemplos da vida quotidiana, como a carreira que não escolhemos, quando, findo o ensino secundário, optámos pelo prudente e não pelo que realmente queríamos estudar/”fazer na vida”. Estas “coisas” que não fizemos, mas poderíamos ter feito, têm imenso poder sobre nós: nós somos aquilo que decidimos ser, mas também aquilo que decidimos não ser. O facto de ignorarmos como “teria sido”, caso tivéssemos feito diferentes opções, tem o potencial de assombrar aquilo que de facto somos e sabemos.
Tudo isto parece evidente ao nível pessoal, mas é na sua transposição para o nível social que a reflexão sobre aquilo que não fizemos e aquilo que ignoramos ganha particular importância. O exemplo mais óbvio, no contexto de 2020, é o confinamento que poderíamos não ter feito. Não sabemos o que teria acontecido sem confinamento, para lá do que umas previsões (astrologia disfarçada de matemática) nos dizem; ou para lá do que sabemos ter ocorrido com doenças respiratórias anteriores. Mas, em bom rigor, simplesmente não sabemos, porque não escolhemos essa opção. No que toca ao que ignoramos, o final de 2020 fornece mais um excelente exemplo na reacção perfeitamente histérica à mutação do vírus. Na BBC, uma senhora catedrática destas coisas, afirmava taxativamente que era preciso “fechar tudo” por causa da mutação. Quando a jornalista lhe pergunta se estava envolvida na investigação sobre a mutação, afirma que não; quando interrogada sobre porque é que afirmava taxativamente que é uma mutação perigosa, diz: “se parece um pato e nada como um pato, então deve ser um pato”. Portanto, com base na possibilidade de ser, e não no facto de ser, tomamos a decisão radical de fechar Inglaterra e condicionamos a nossa vida, não pelo que sabemos, mas por aquilo que, por agora, ignoramos.
O exemplo da mutação tem pormenores ainda mais interessantes. Informa o Financial Times, que afinal a mutação não ‘é inglesa’: o que se passa é que o Reino Unido é dos poucos países no mundo a fazer o mapeamento do código genético do vírus (ver aqui). Isto é: a mutação não foi encontrada noutros países, simplesmente porque esses países não procuraram a mutação. Este exemplo consegue atingir um novo patamar em relação ao poder daquilo que ignoramos quando somos informados, por quem investigou a mutação (como o Professor Francois Balloux), da sua total irrelevância… A opinião dominante acaba por ser baseada não em factos, mas na sua ausência. E para entender o mundo político hodierno, é mais importante olhar para o que ignoramos do que para o que julgamos saber.
Como uma espécie de corolário da “Sociology of Nothingness” temos aquele que é provavelmente o maior drama contemporâneo: o total desprezo por relações de causalidade. A ausência de causalidade e de prova da mesma não são um impedimento para a adopção de medidas radicais, muito menos para cimentar a crença nas afirmações mais extraordinárias. Um bom exemplo disto mesmo é o “Great Reset“.
O “Great Reset” é uma iniciativa do Fórum Económico Mundial (ver aqui), apoiada por vários líderes mundiais (incluindo António Guterres e o Papa Francisco). O “Great Reset” propõe que aproveitemos a Covid para reinventar o capitalismo, tratar em definitivo da alegada “crise climática” e redesenhar a forma como nos relacionamos. “Redesenhar” o mundo é o grande lema (ver aqui). O que é interessante em torno do “Great Reset” é, contudo, aquilo que ignoramos e não aquilo que sabemos acerca da iniciativa. Por exemplo, segundo o Fórum Económico Mundial, no novo mundo redesenhado não há propriedade privada. Num dos anúncios de propaganda da iniciativa (ver aqui), a primeira medida para combater as mudanças climáticas é apresentada da seguinte forma: “You will own nothing. And you’ll be happy. Whatever you want you’ll rent, and it’ll be delivered by drone.”
Mas o que não é dito é: porque é que para tratar do clima, os cidadãos têm que abdicar da sua propriedade privada e transformar aquilo que usam numa renda? Já temos exemplos de como isto poderá ocorrer. O cidadão do futuro não detém um carro, mas sim duas rendas: para o carro e para a bateria. Se é para abolir a propriedade privada, quem detém as empresas que produzem veículos, comida, roupa, etc? E qual a relação de causalidade entre isto tudo e os objetivos estabelecidos?
No novo mundo “redesenhado”, a humanidade (ou o que sobrar dela) vai finalmente para o espaço. “Polluters will have to pay to emit carbon dioxide”, logo seguido de “There will be a global price on carbon” e mesmo antes de sermos informados do nosso destino: “You could be preparing to go to Mars” (ver vídeo acima). Somos ainda informados acerca do fim do consumo de carne, consumo esse, que tem sido sistematicamente apresentado como factor essencial para o desenvolvimento da espécie humana. Tudo em nome do planeta, da igualdade nas suas mais variadas vertentes (as actuais e todas as que ainda não foram inventadas) e com a garantia, não demonstrada, de que assim alcançaremos emissões “zero” (uma impossibilidade, já agora). Ninguém calcula quanto poupamos em emissões de carbono por não comer carne e quanto é que povoar Marte “custa” em emissões. O importante acerca da iniciativa não é o que é dito, mas o que é ocultado. E o que é ocultado não é nenhuma teoria da conspiração. O que é ocultado é a demonstração, com o estabelecimento de relações de causa-efeito, da eficácia das medidas anunciadas.
É Mark Carney, antigo governador do Banco de Inglaterra, enviado especial das Nações Unidas para a acção climática e a finança, membro do Council for Inclusive Capitalism, fundador de uma task force para criar um “global offset market” e membro do board do Fórum Económico Mundial, quem reconhece a eventual inutilidade das medidas para tratar dos alegados desafios climáticos: “Mark Carney, (…) has now decided that in the fight against climate change all weapons are needed — even those with sometimes questionable effect.“(ver aqui).
Na agenda do “Great Reset” seremos condicionados pelo que ignoramos, por aquilo que é impossível determinar e não por factos verificáveis. Não existe o estabelecimento de uma relação de causa-efeito entre a abolição da propriedade privada, o fim do consumo de carne, o início das viagens a Marte e os efeitos desejados pela iniciativa: igualdade de género, racial, económica e emissões zero… como é que ir a Marte resolve tudo, não sabemos nem queremos saber. Também não é explicado qual o interesse em ir até Marte, mas chegados aqui, penso que já percebemos que tudo o que sai do Fórum Económico Mundial não tem interesse.
No mundo redesenhado pelos proponentes do “Great Reset“, os factos contam pouco. Mas isso não impede muitos de acreditarem na eficácia e na bondade da iniciativa. E numa época em que temos acesso a tanta informação, o importante acaba por ser, não a informação que recolhemos, mas a forma como interrogamos a realidade e a informação que escolhemos consultar. A informação, tal como o resto que enumerei no início, tem importância não pelo que representa, mas precisamente pelo que escapa a essa representação. E o progresso científico foi feito por via da constante interrogação daquilo que é representado e do que não é representado. Há, contudo, coisas fundamentais acerca das quais sabemos muita coisa. Sabemos, por exemplo, que sempre que uma pequena elite sonha redesenhar o mundo, o resultado é o totalitarismo. E quanto mais nos informarem que tal é feito para nosso bem, mais assustados devemos ficar.