Estou a ler A Corja, de Camilo Castelo Branco. A certa altura, encontro uma descrição fantástica de um antepassado meu: “Chegava a caleche descoberta de um brasileiro purpurino, coruscante, de cores arreliosas, oftalmicas, delirantes, duma garridice espaventosa. Era o Arara, um triunfador daqueles tempos em que a casaca azul e o colete amarelo não dispensavam uma gravata vermelha, luvas verdes e calças côr de alecrim com polainas cinzentas.” O seu nome era António Lourenço Correia e tenho orgulho deste meu tio tetravô do Porto oitocentista. Novo rico? Talvez, mas a descrição trocista de Camilo é também símbolo de um empreendedorismo que faz a economia evoluir, a eterna procura por uma vida melhor – e é isto que faz a humanidade avançar.

Sempre existiram novos-ricos, sempre existirão. Recentemente, neste pequeno retângulo houve uma enxurrada que apareceu aos trambolhões após o vinte e cinco de Abril, depois mais outra na adesão à CEE, outra nos tempos de Cavaco Silva e agora outra nos Governos de Sócrates e Costa. Nada contra. Faz parte do nosso sistema económico que haja um elevador social e que uns subam enquanto outros descem. O problema português é que o mercado é demasiado inconsistente, sendo que o enriquecimento acontece poucas vezes através da inovação e do empreendedorismo, e muitas vezes por distorções provocadas pela corrupção e esperteza saloia. Quem sofre com isto é a economia do país, que nunca se conseguiu solidificar ou ser minimamente entusiasta nos últimos cinquenta anos. Cenário este dentro da Europa do novo milénio, onde a competitividade é cada vez maior e não encaixa nos caminhos estreitos do nosso amadorismo.

Os novos-ricos de Cavaco Silva e da adesão à CEE estão hoje muito incomodados com as palestras da Cristina e da vida faustosa do Cristiano Ronaldo. É o velho ciclo que se repete. Já antes, as riquezas feitas no vinte e cinco de Abril estiveram muito incomodadas com os que vieram depois. Faz parte do funcionamento do tal elevador, que em muitos casos vai em sentido descendente e forma novos pobres. Se a nossa competitividade económica fosse sólida e sustentada, não seria necessário que um saísse quando outro entrasse, pois a riqueza criada seria suficiente para que as famílias fossem recompensadas pelo risco de investimento e o esforço do trabalho. Uma economia que não tem nas suas raízes valores sólidos e impermeáveis a agendas mesquinhas desperdiça em vez de gerar oportunidades nos setores de atividade criadores de maior valor. Além disso, não aproveita as capacidades territoriais de todas as regiões e não atrai capital humano capaz de alavancar o potencial das empresas.

Há trinta anos, quando o mundo se livrava das ideias e conceitos monocórdicos dos anos oitenta, a maioria das pessoas não fazia ideia do que se estava a passar e aqui em Portugal teimava-se em ver o mundo a preto e branco. Por exemplo, enquanto um pequeno grupo da minha universidade ouvia o “grunge” e lia as novas tendências literárias europeias, a maior parte dos estudantes era fã incondicional do Marco Paulo. Lembro-me bem da música que vinha do estacionamento, fossem Ferraris ou carros de último modelo: “deixa-me cheirar o teu bacalhau, Maria” (Quim Barreiros). Mas pensando nisto hoje, não me sinto incomodado como no passado. É que tanto ontem como amanhã, o novo-riquismo só é mau se os seus valores forem negativos e o seu conhecimento não gerar reinvestimento, inovação ou produtividade. Só a riqueza gera riqueza, mesmo que seja a partir do sal da terra.

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