Um filósofo observou que somos parecidos com marinheiros no alto mar que precisam de reparar os respectivos barcos mas que, justamente porque estão no alto mar, não podem fazer tudo o que é preciso; por exemplo, só conseguem reparar tábuas do seu casco em mau estado se não as tentarem substituir todas ao mesmo tempo. Uma tábua nova tem sempre de ser pregada a alguma coisa que já exista, mesmo que essa coisa não esteja em grande estado. As grandes reparações navais dão mau resultado em mar alto, e são desaconselháveis.
Usou esta analogia para explicar a relação que existe entre as ideias novas que os cientistas têm e as suas ideias velhas; e para mostrar que uma nova teoria não consiste em aparafusar ideias novas a ideias novas; mas em emendar aqui e ali ideias velhas com ideias melhores. Para o filósofo do barco nunca estamos numa posição em que possamos prescindir de todas as ideias insatisfatórias; a reparação das nossas ideias mais insatisfatórias consegue-se fazer à base das ideias que arranjamos nessas emergências. Quando estamos longe da costa não podemos começar do zero; e estamos sempre longe da costa.
A analogia poderá ocorrer-nos em dias em que as torneiras pingam, apareceram manchas nas paredes, e o planeta caminha para a destruição. O único remédio para estas várias conjunturas trágicas é fazer o que se pode, e fazê-lo na medida em que se puder fazê-lo. Com probabilidade a torneira nova ficará por cima de um lavatório velho; e só conseguiremos pintar uma parede. A analogia aplica-se também sem esforço a matérias políticas: as soluções para problemas políticos são mais parecidas com torneiras novas em casas de banho velhas do que com propostas de lei para abolir a humidade.
Somos não obstante frequentemente atormentados pela ideia de resolver problemas de cima a baixo. Atrai-nos a disjunção segundo a qual ou as coisas são feitas em condições, ou não há condições para fazer nada. A mesma atracção neurótica leva-nos a decidir no alto mar substituir todas as tábuas do casco ao mesmo tempo, e também felizmente a desistir de o fazer à primeira contrariedade; encoraja a fantasia que consiste em, como disse também o filósofo do barco, “sobrestimar as nossas visões.” Quanto mais drásticas são as nossas visões, maior é a probabilidade de as sobrestimarmos.
Percebe-se porquê: as visões que mais sobrestimamos mostram-nos sempre que tudo está ligado, que as soluções são mentais, que as condições são claras, que os outros são cegos, e que não há mais nada a fazer. As soluções que nos aparecem nessas visões são como as soluções dos sonhos, isto é, como comer algodão doce: ficamos lambuzados, mas não permanentemente satisfeitos. O talento para a sobrevivência exprime-se muito melhor em reparações parciais do que em visões; e, francamente, através de uma certa falta de condições tecnológicas, políticas e filosóficas.