É provável que muitos achassem piada que na estação de televisão pública, paga por todos nós, ao fechar um bloco de notícias fosse apresentado um cartoon onde se vislumbra um caixão a abrir para de seguida se fechar com a caricatura de Pedro Passos Coelho deitado nesse mesmo caixão – isto devido ao seu surgimento na campanha eleitoral.
É claro que rapidamente e por parte de alguns acérrimos defensores da liberdade artística, as palmas e o entusiasmo pela “obra” de Tiago Albuquerque foi por demais sentida.
Considerandos à parte sobre a cultura do gosto, a questão essencial é só uma: não deveria a estação pública alhear-se de qualquer forma – seja objetiva ou subjectiva – de fazer qualquer tipo de campanha política, não deveria também pensar na forma como manda e paga para se fazer humor?
O serviço público da RTP há muito ultrapassa os limites do seu papel constitucional. Porém, o cartoon da polémica gozou, vilipendiou e fez troça de um antigo Primeiro-Ministro que, para seu infortúnio perdeu a esposa, um irmão e um pai num curtíssimo espaço tempo. Para muitos, este cartoon é uma arte, é uma obra-prima e deve ser sempre considerada a liberdade artística. Se isto é mesmo liberdade artística eu e muitos portugueses não percebemos mesmo nada disto. Só sei que isto não se faz e a obra é ou será paga por todos nós, e por essa razão temos a liberdade, e até dever de nos opormos a tamanha falta de respeito.
O que se viu é a RTP a descer a um tal nível que nunca nenhum órgão de comunicação — público ou privado — chegou. Podem vir todos aplaudir, podem vir todos dizer que não se pode censurar a “arte”. Mas meus amigos, este cartoon não é coisa nenhuma, é uma estupidez tamanha, que não tem em conta o passado recente do “alvo”.
E vou mais longe, entre este cartoon e os polémicos cartazes dos professores a ofender a imagem de António Costa a diferença é pouca. Se os cartazes apresentados eram representativos de racismo , como Carmo Afonso escreveu no jornal Público a 11 de junho de 2023, este cartoon apresentado pela televisão pública é puro terrorismo emocional.
Talvez Carmo Afonso pudesse coerentemente repudiar agora este género de humor, em vez de se perguntar na sua rede social X “quando é que os artistas poderão voltar a fazer sátira com passos coelho? Devem deixar passar 5 anos? 10? Ou se decidiu regressar à vida política deve estar apto a ser criticado e satirizado?”
Nota: Cara Carmo Afonso , todos estão aptos para tal, mas vamos ser sinceros e pôr as escolhas políticas individuais de lado: quero querer que a sua condição humana não permitirá concordar e aceitar cartazes em manifestações que se apresentem com teor racista tal como não aceitará que não se pratique “arte” com um cartoon televisivo que se apresente como mero e puro terrorismo emocional. Ambos ferem e ambos atingem o coração humano num arrepio quase de morte e de impotência sobre a condição pessoal e individual. Ambos são indignos.
Tenho uma certa pena de que muitos daqueles que claramente foram e ainda são — legitimamente — contra as políticas de direita aquando da Troika sob liderança de Passos Coelho, não venham agora solidarizar-se com o homem que apareceu num caixão em jeito de sátira em nome da liberdade artística quando em dois anos perdeu a esposa, o irmão e o pai. Há momentos na nossa vida, que seria bom calçar os sapatos dos outros para podermos sentir o seu aperto, por vezes é bom vestir-nos com a pele dos outros para sentirmos as suas cicatrizes por mais que elas estejam escondidas mas que por certo estarão para sempre gravadas. Por certo, o mundo seria bem melhor se por uns instantes nos pusemos no lugar do outro.
A liberdade de expressão artística e a RTP falharam. Não pode valer tudo em nome da arte e da liberdade. Não se trata aqui de uma defesa pessoal à pessoa visada, trata-se disso sim, de um repudio que a sociedade portuguesa deve refletir fazer sobre a actuação de uma televisão pública que, quer se veja ou não é paga em impostos por todos os contribuintes deste país.
Fosse qual fosse o alvo público que o autor quisesse atingir, deveria este ter pensando – não conhecendo caberia à RTP fazê-lo – em ser mais humano tendo em consideração a história pessoal e individual. Mas a preferência e a preocupação da mensagem a passar foi outra, foi o surgimento político em campanha da AD de Pedro Passos Coelho deitado num caixão, ignorando o seu passado e os seus acontecimentos ainda muitos recentes de perda pessoal.
A RTP, na sua decência e dever institucional, tem agora uma obrigação. A de vir a público lamentar o sucedido porque no limite foi o dinheiro dos impostos dos portugueses serviu para pagar ao artista este cartoon. Não importa aqui se a figura a ser satirizada é um político de direita ou de esquerda, o que é relevante é a condição desse homem de acordo com a “obra artística” que se apresentou. Fosse ele quem fosse. Mas o certo, é que possivelmente muitos daqueles que defendem a liberdade artística e aplaudem agora esta manifestação de arte, mostrariam o seu total repúdio caso a figura fosse ligada à esquerda e surgisse num caixão, encontrado-se ela nas mesmas condições pessoais que Passos. Talvez caísse o Carmo e a Trindade se tudo isto fosse ao contrário. Imaginem o acontecido sob a tutela da RTP em um governo de direita.
Aconselha-se à administração da televisão pública ter mais cuidado na gestão do dinheiro dos nossos impostos no que respeita a brincadeiras deste género. Para ser assim, então que se repense a privatização da RTP, e acabe-se de vez com esta falta de consideração e respeito pelo dinheiro do contribuinte.