Opino, logo existo. Esta será a máxima da larguíssima maioria de jornalistas e comentadores, em geral pressionados por terem de encher colunas. Como muito raramente sabem do que falam, e se baseiam no “vento”, ou quando muito em breves conversas com fontes, o resultado é um tratamento superficial. Sendo o Caso Mondego uma matéria complexa, a superficialidade só piora o problema.

Face a um qualquer problema, a complexidade das sociedades impõe que se comece por o enquadrar tão objetivamente quanto possível. Inevitavelmente, esse enquadramento é influenciado por factos, pelo passado, e por ideias feitas ou preconceitos do analista.

Ao analisar o Caso Mondego, cujos factos não conheço diretamente, mas que consigo entender, por ser oficial reformado e profissional de engenharia (em atividade), procurei definir o enquadramento que penso ser o mais adequado. O problema situa-se no âmbito da política pública de defesa: ocorreu com recursos militares, em tarefas exercidas por militares, envolve matérias de disciplina e justiça militares, e o Governo e o Presidente da República fizeram declarações públicas sobre o assunto. Mas a solução não é militar, é política, como viso explicar.

A minha reflexão é tributária de um dos raros contributos metodológicos para a análise objetiva e serena do problema, produzida por três oficiais da Armada reformados, intitulada Reflexões Indesejadas.

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Vou então aqui tratar de três vertentes, essenciais para o enquadramento: o dever de obediência; a “cola” dos exércitos; e o “diluente” dos exércitos.

Em primeiro lugar, o dever de obediência é um dever simétrico do poder de direção, e ambos são inerentes a todas as organizações hierárquicas, públicas e privadas. Numa organização estruturada segundo o modelo hierárquico, há quem tenha autoridade formal para dar ordens e ser obedecido (chefes ou órgãos), o que significa, simetricamente, que há quem tenha o dever de obedecer às ordens (legítimas) dadas por aqueles. Quase todos os que têm autoridade para dar ordens, também estão sujeitos ao dever de obediência; por exemplo, os membros do Governo têm poder de direção sobre os comandantes dos Exércitos, tal como estes têm sobre os comandantes dos navios, e estes sobre os elementos da respetiva guarnição – diferem nos conteúdos. É de realçar que o dever de obediência está, antes de mais, previsto nas Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar (alínea d) do art.2º da lei 11/89), no Estatuto dos Militares das Forças Armadas (alínea a) do nº1 do art.12º do anexo do decreto-lei 90/2015), e na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (alínea f) do nº2 e nº8 do art.73º do anexo da Lei 35/2014).

A Administração Pública goza do privilégio da execução prévia (ou autotutela executiva) o qual, em termos simples, consiste em poder impor as suas decisões aos particulares sem a intervenção de um tribunal, gozando da presunção da legalidade dessas decisões. Também no exercício do poder de direção existe essa presunção. Ainda assim, num Estado de Direito, tal como a Constituição o define, todas as decisões dos órgãos administrativos podem ser sindicadas pelos tribunais; é possível anular uma decisão de um órgão administrativo, ou julgá-la nula. As decisões dos órgãos administrativos têm de servir o interesse público. Por exemplo, uma decisão que se sabe ser fútil quando é tomada, é um desperdício e, por isso, é contrária ao interesse público. Por vezes, só um tribunal, e a posteriori, o pode concluir, para o que tem, ou deve ter, em consideração todos os interesses e valores relevantes.

Há dois pontos a realçar. Um: não basta ter autoridade formal para que uma decisão seja legítima; ela tem de servir o interesse público. E outro: as decisões dos chefes militares, de todos os chefes militares, são sindicáveis. Há militares (ainda) que acham que a obediência é cega e que as decisões e ordens dos chefes militares não são sindicáveis. E acham que as questões militares devem ser tratadas só por militares. Num Estado de Direito Democrático não é assim. Há anos que venho notando que é fraca ou nula a formação dos militares sobre o Estado de Direito Democrático, o qual juraram e juram defender.

Em segundo lugar, a “cola” que une e dá coesão aos exércitos é a confiança dos seus membros uns nos outros (e sobretudo nos chefes em todos os níveis) e um sentido partilhado de missão – mais, se for justa e nobre. Por isso, é decisiva a conduta dos chefes, sobretudo dos oficiais, mormente os de topo; estes constituem a referência para todos. Os códigos disciplinares ou penais são apenas dissuasores e corretores de desvios, indispensáveis face à incontornável diversidade das pessoas. A permanente disponibilidade para o serviço e para a defesa da pátria, inclusive com o sacrifício da própria vida, e os regimes disciplinares e penais mais agressivos a que os militares estão sujeitos, e não o dever de obediência, é que distinguem esta carreira especial de funcionários públicos, das demais carreiras. Estes regimes traduzem só menor tolerância a desvios do que noutros âmbitos. O dever de obediência é o mesmo em qualquer hierarquia.

Em última análise, as pessoas pensam, e consentem o poder. Até em regimes totalitários, com corretores brutais, há quem decida dizer não. Em democracia, são reconhecidas a todos os cidadãos as capacidades de pensar e de decidir como atuar em cada momento; reconhecê-lo exige mais qualidade de quem dirige ou comanda. Por isso, todo o militar que decide contrariar uma ordem, sabe que deve ser responsabilizado por isso, e pode sofrer consequências graves; logo, tal ato revela tipicamente um sintoma de um problema grave, menosprezado.

É do senso-comum, de civis e militares, que a liderança por certas pessoas leva os seus subordinados a percorrer “a milha extra”, sem ser necessário invocar códigos disciplinares ou penais. Por outro lado, dirigentes cuja conduta é inconsistente, centrada em si mesmos, ou a apelar reiteradamente à disciplina, tipicamente não só não conseguem levar os seus subordinados a chegar à meta, como desincentivam todos a fazer sequer uma jarda extra.

Por fim, poucos conhecem um caso ocorrido em 2010, que pode ser tratado como um ato de indisciplina: o comandante da Armada mandou a fragata “Corte Real” (então integrada no Sistema de Forças Nacional, sob o comando do CEMGFA) para o Funchal para ajudar as autoridades locais após as graves inundações de fevereiro; invocou poderes da Autoridade Marítima Nacional, que não constam da lei, quando ele próprio tratava a AMN como parte do exército do mar (e nesse caso, subordinada ao CEMGFA). Depois de muitos papeis, o assunto foi encerrado por alguém, que decidiu que o resultado validou a iniciativa do comandante da Armada. Neste caso, com altos funcionários militares, nem processo de averiguações houve, e o resultado prevaleceu sobre a disciplina. A disciplina não é a “cola” dos exércitos. Mais e pior: este caso expôs a dualidade de critérios de militares, o que é corrosivo da coesão nos exércitos. Pelo menos, é um “diluente” da coesão.

Há que apurar a influência que tem na coesão dos militares da Armada o facto de o seu comandante se promover no palco mediático. Será compatível dirigir uma organização com problemas graves, com uma campanha político-eleitoral, mesmo sem ser para um cargo de âmbito partidário? Será que os militares sentem que partilham o sentido de missão com o comandante da Armada? Será que a reação dele, de novo promovendo a exposição mediática, e apelando aos corretivos, promoveu a coesão interna e a vontade de fazer uma milha extra? Será que tem estado disponível para ouvir más notícias? Quanto pessoal deixou a Armada por causa dele? Em vez da “cola”, não estará antes a aplicar um “diluente” à Armada?

É bom recordar que, em vice-almirante, numa publicação da Armada, o seu atual comandante veio dizer que tinha soluções para tudo, até sobre a manutenção dos navios; considerou-se mesmo arquiteto naval, e inventou um “porta-drones”, cuja caracterização tem mudado ao longo do tempo, e cujo processo de aquisição fracassou. O Caso Mondego pode ser o “bode expiatório” para o comandante da Armada disfarçar os seus fracassos, e suscitar simpatia entre os que acham que Portugal necessita de “homens fortes”. Não tem de ser assim. E é de esperar que dos processos em curso se venham a apurar factos que ele bem desejaria que não viessem a público.

Há que notar o ensurdecedor silêncio de tantos jornalistas sobre estes fracassos, sobretudo aqueles sempre tão rápidos a exigir responsabilização de figuras públicas, e até a pressionar a sua demissão.

E a passividade dos órgãos de soberania? Deve-se a falta de pressão mediática? Ou é o pânico de o comandante da Armada, se não concluir o seu mandato, se juntar a um partido da Oposição, em especial ao partido Chega?

Isto começou mal, com uma nomeação e um ato de posse chocantes, do oficial menos qualificado para exercer o cargo de comandante da Armada. Notei-o à data; agora está à vista de todos.

Com ele centrado na sua imagem e nos seus fins pessoais, não é de prever que se demita; e a degradação vai continuar. Quando vão os órgãos de soberania travar a degradação em curso, que prejudica a Armada e Portugal?