No passado dia 15 de Janeiro a Comissão Europeia apresentou uma Comunicação com o cinzento título “Towards a more efficient and democratic decision making in EU tax policy” o que, traduzindo, significa, aproximadamente, caminho para um processo de decisão mais eficiente e democrático no que respeita à política fiscal da UE.

O título tem duas palavras chave: eficiência e democracia.

Todos aqueles que defendem o projecto Europeu, como é o meu caso, querem uma UE mais eficiente e mais democrática. Provavelmente, até os mais eurocépticos concordariam que mais eficiência e mais democraticidade são elementos chave para uma UE mais funcional, ainda que em moldes diferentes.

Mais, aqueles de nós que defendem o princípio da subsidiariedade, o qual está inscrito no artigo 5º do Tratado da União Europeia, gostam particularmente de ler a palavra eficiência, na qual vemos uma UE que só interferirá nas situações em que tal mostre ganhos de eficiência para todo o conjunto e para cada membro em particular.  Do mesmo modo, também para quem não defende um modelo Federal, democracia poderá ser interpretada como uma UE que respeitará a vontade dos seus Estados-Membros, eles próprios Estados Soberanos, sem fazer sobrepor a alguns a vontade de uma maioria.

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É aqui, neste último pressuposto, que reside o verdadeiro cerne da questão. Esta Comunicação da Comissão, sem ser ainda uma proposta legislativa, vem solicitar (adequada escolha de palavra) aos líderes da UE e ao Parlamento Europeu que “avaliem a possibilidade de se passar progressivamente para um processo de decisão baseado na votação por maioria qualificada” [1] no que respeita às questões de política fiscal. Trocando por miúdos, isso quer dizer que deixaria de ser necessária a unanimidade no Conselho Europeu para fazer aprovar propostas no domínio da política fiscal, como até aqui. Note-se que a definição da política fiscal é, ainda, um reduto de competência exclusiva dos Estados e parte da sua esfera de soberania.

Para atalhar caminho e, presume-se, evitar uma onda de contestação mais forte, a Comissão, no seu comunicado de imprensa [2], apresenta o disclaimer: “A Comissão não propõe qualquer alteração das competências da UE no domínio da fiscalidade nem do direito de os Estados-Membros fixarem as taxas de tributação das pessoas singulares ou coletivas que considerem adequadas. Em vez disso, tem por objectivo permitir que os Estados-Membros exerçam mais eficazmente a soberania que já partilham, de modo a que os desafios comuns possam ser enfrentados mais rapidamente.”

Não deixa de ser irónico perceber que o que a Comissão está a dizer é que vamos pensar em aprofundar as competências partilhadas e em acabar com a igualdade dos Estados no Conselho, para reforçar a sua soberania fiscal, o que é um paradoxo: perder soberania efectiva para “ganhar” uma hipotética “soberania” eficiente!

Mas não vamos ainda tão longe, porque, para já, a Comissão quer apenas que consideremos avançar para o fim da unanimidade em matéria fiscal, mas só naqueles casos em que já existem competências partilhadas e sem mexer no direito dos Estados de definir as suas políticas fiscais. Isto, em bom português, é o que se chama vestir o lobo em pele de cordeiro e atirar o barro à parede a ver se cola.

Sob a capa de uma proposta quase inócua, que se preocupa apenas com a “eficiência e democracia”, vamos lá deixar um cavalo de Tróia legislativo, pronto a fazer o seu caminho, o qual, mais tarde ou mais cedo, vai começar a galopar. Aliás, este não é um método novo de as instituições europeias trabalharem (the devil is always in the details and they know it) e não é um método bonito. Muito menos democrático.

O que isto significa é que aqueles que hoje deixarem passar esta ideia estão a abrir caminho para muito mais. Um dia, talvez não muito longínquo, acordam e a Comunicação terá dado lugar a uma Proposta que será discutida e votada. Inócua ainda porque, usando as palavras da Comissão, “não propõe qualquer alteração das competências da UE no domínio da fiscalidade nem do direito de os Estados-Membros fixarem as taxas de tributação das pessoas singulares ou coletivas que considerem adequadas”. E tal proposta, que se tornará lei, irá também ela fazer o seu caminho, e, se isto até correu bem, depois dirão, porque não irmos mais longe e fazer com que passe a existir competência da UE em matéria fiscal e seja Bruxelas a definir taxas, sujeitos passivos, formas de taxação, benefícios ou isenções? Primeiro, virá um livro de uma qualquer cor, depois, uma Comunicação (ainda inócua porque são apenas cenários) e, um belo dia, acordamos com uma proposta legislativa e os Estados a perderem uma parcela importante da sua soberania. E não se pense que tal obrigará necessariamente a uma alteração dos tratados, porque a interpretação[3] que tem permitido a aprovação e/ou apresentação de peças legislativas relativas a impostos directos, como a Directiva Mães-Filhas ou as propostas relativas à Matéria Comum Colectável (CCTB e CCCTB), poderá ser utilizada nesta circunstância.

Não se iludam com a linguagem cinzenta. Isto (harmonização da política fiscal) é o que Bruxelas quer. É, aliás, o seu sonho de há muitos anos, um sonho que esbarrou sempre na oposição firme de alguns, razão pela qual interessa eliminar, de vez, a barreira da unanimidade.

E não se pretenda convencer ninguém que o voto por unanimidade, numa questão que faz parte da soberania de cada Estado (como é o caso da política fiscal), é um método pouco democrático. Pelo contrário, o voto por unanimidade força ao diálogo e ao compromisso, o que reforça a democracia europeia. Enquanto a UE não for um Estado Federal (que ao contrário do desejo de alguns, ainda não é), democracia é avançar na exacta medida em que todos os membros entenderem, de comum acordo, sem forçar a vontade de uma parte ao todo. Outro qualquer método apenas fraccionará, dividirá e excluirá aqueles que não concordam com os desígnios de uns quantos.

Quanto à harmonização fiscal, a melhor prova de que este é o objectivo é o uso que a actual Comissão vem a fazer do direito europeu da concorrência.

Com base numa interpretação inovadora e extensiva das regras sobre auxílios de Estado[4], a Comissão Europeia considerou terem sido atribuídas vantagens fiscais ilegais por Estados como a Irlanda, Holanda, Luxemburgo e Bélgica a empresas como a Apple (13 mil milhões de euros), a Amazon (250 milhões de euros), a FIAT e a Starbucks (ambas entre 20 a 30 milhões de euros).

Através desta interpretação nova (e questionável) do que são auxílios de Estado, a Comissão está, na prática, a dizer aos Estados o que devem taxar, mesmo que seja contra a sua vontade (ver o curioso caso da Irlanda, que contestou a Decisão da Comissão[5]!)

Mais, muitos destes Estados não concederam tratamento mais favorável a estas companhias (elemento essencial para estarmos em violação do artigo 107.º do TFUE) mas limitaram-se a aplicar as suas regras de direito fiscal (gerais e abstractas) o que dificilmente poderia ser entendido como um auxílio de Estado. Para além disso, é disputável que mesmo se tivesse havido um tratamento de excepção, este tenha afectado as trocas comerciais entre os Estados-Membros ou falseado ou ameaçado a concorrência (outros pressupostos essenciais de aplicação do referido artigo 107º do TFUE).

Apesar da soberania fiscal dos Estados, na ânsia de harmonização fiscal, a Comissão não se acanhou em reinterpretar as disposições legais e de as aplicar a situações onde não tinha chegado antes (e vamos ver o que resulta dos recursos das decisões da Comissão nesta matéria). Na prática há uma interferência directa da Comissão em matérias para as quais a Irlanda, o Luxemburgo, a Bélgica e a Holanda são soberanas, ou seja, há, em matéria fiscal, uma actuação proto-federal da Comissão que nunca foi acordada pelos Estados.

Aliás, em matéria de harmonização fiscal, o artigo 113.º do TFUE é claro e esclarece os termos em que esta poderá ocorrer: “o Conselho, deliberando por unanimidade, de acordo com um processo legislativo especial, e após consulta do Parlamento Europeu e do Comité Económico e Social, adopta as disposições relacionadas com a harmonização das legislações relativas aos impostos sobre o volume de negócios, aos impostos especiais de consumo e a outros impostos indiretos, na medida em que essa harmonização seja necessária para assegurar o estabelecimento e o funcionamento do mercado interno e para evitar as distorções de concorrência”.

Ou seja, estão definidos quais os impostos que podem ser objecto de algum tipo de harmonização (impostos indirectos); qual o processo para a deliberação (unanimidade), qual o objectivo (assegurar o estabelecimento e funcionamento do mercado interno e evitar distorções de concorrência) e qual o pressuposto (ser necessário).

A única forma de contornar tais disposições restritivas é, de facto, usar o direito europeu de concorrência, a arma mais poderosa ao serviço da Comissão, para atingir objectivos fiscais. E isto é tudo menos respeitar o processo democrático europeu. Primeiro, porque as decisões no âmbito de direito europeu da concorrência não são escrutináveis pelas instituições que representam os cidadãos e os Estados (Parlamento e Conselho) mas pelos Tribunais. Em segundo lugar, porque a política fiscal é, como vimos, um reduto da soberania dos Estados que está a ser posta em causa usando mecanismos que nunca foram pensados para tal, como é o caso dos procedimentos em matéria de auxílios de estado.

Como escrevia, há uns anos, a ex-comissária da concorrência na Comissão Barroso I, Neelie Kroes[6]: “Os Estados membros da UE têm o direito soberano de determinar suas próprias leis fiscais. Os auxílios de Estado não podem ser utilizados para reescrever essas regras. No entanto, as actuais investigações sobre auxílios estatais às decisões tomadas em matéria fiscal parecem fazer exatamente isso, sugerindo uma nova abordagem radical às chamadas regras de preços de transferência que determinam onde os lucros serão alocados.”[7]

Esta abordagem radical, como lhe chama Neelie Kroes, está, portanto, a fazer o seu caminho. Se nada fizermos, a harmonização fiscal irá acontecer: seja devagarinho pela via dos avanços e recuos do processo legislativo ordinário, seja pela continuação do uso do direito europeu da concorrência nos termos em que foi feito nos últimos anos.

A harmonização fiscal, com a necessária perda de soberania e de competitividade fiscal dentro da União, não é um bom sinal, sobretudo para um país como Portugal que poderia (se quisesse) usar regimes fiscais mais favoráveis para atrair investimento. A competitividade fiscal entre Estados é um elemento fundamental para manter a UE atractiva perante terceiros e para controlar o ímpeto tributário de certos governos.

As eleições europeias estão já aí, em Maio de 2019. Ao invés de se discutirem questões nacionais e as eleições servirem, na prática, como um momento de apreciação dos vários governos, seria bom que os partidos e os candidatos respondessem com clareza o que pensam sobre harmonização fiscal e que opinião têm sobre a opção da actual Comissão de usar o direito europeu da concorrência para atingir objectivos fiscais.

É fundamental que os nossos representantes saibam bem o que está em causa e que tomem posições claras nesta matéria, porque, se nada fizermos, mais depressa, ou mais devagar, iremos deparar-nos com o fim da soberania fiscal. E isso, sim, uma vez estabelecido, será irreversível.

Mestre em Direito Europeu da Concorrência e especialista em assuntos europeus

[1] Retirado do Comunicado de Imprensa
[2] http://europa.eu/rapid/press-release_IP-19-225_pt.htm
[3] “A legislação em matéria de tributação directa é abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 115.º do TFUE. Esta disposição determina que as medidas legislativas de aproximação adoptadas ao abrigo desse artigo revestem a forma jurídica de uma directiva.” In Proposta de Directiva do Conselho relativa a uma matéria colectável comum consolidada do imposto sobre as sociedades

[4] Artigo 107º e seguintes do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, TFUE “Salvo disposição em contrário dos Tratados, são incompatíveis com o mercado interno, na medida em que afectem as trocas comerciais entre os Estados-Membros, os auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam, que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções.” (artigo 107.º, nº1 do TFUE)
[5] O governo irlandês decidiu, em 2016, recorrer da decisão da Comissão de exigir à Apple o pagamento de 13 mil milhões de euros em impostos. O texto do recurso pode encontrar-se aqui.
[6] Mais tarde, na Comissão Barroso II veio a ocupar o lugar de Vice-Presidente.
[7]EU member states have a sovereign right to determine their own tax laws. State aid cannot be used to rewrite those rules. However, the current state aid investigations into tax rulings appear to do exactly that, by suggesting a radical new approach to so-called transfer-pricing rules that determine where profits shall be allocated.” (in The Guardian)