Ouvimos recentemente o primeiro-ministro a aviltar as truculentas circunstâncias em que centenas de cidadãos portugueses aguardam por uma consulta urgente num Centro de Saúde, onde, pelos vistos, há data marcada para se ficar doente. Assistimos a uma dissertação bacoca de quem se conforma em dizer: “só há problemas porque nesse local existe um Centro de Saúde e porque temos um Serviço Nacional de Saúde”. Não Sr. primeiro-ministro! Não nos podemos “habituar” à displicência com que se devotam pessoas como eu, ou o senhor, a um calvário de atropelos à dignidade humana, como se de uma esmola se tratasse a simples existência de um SNS.
A melhor forma de dignificarmos o esforço dos fundadores do SNS, uma das, ou talvez a maior, das conquistas da democracia portuguesa, é não nos conformarmos com o legado que herdámos. Pelo contrário, honrar a memória de quem criou o SNS, passa por uma atitude resiliente e pró-activa de reformar, actualizar e encontrar soluções exequíveis e sustentáveis economicamente para os problemas que são reais e acometem pessoas como nós, muitas delas vulneráveis e que merecem o nosso maior respeito.
A história política da nossa democracia demonstra bem a matriz anti-reformista da maioria dos sucessivos governos, mais preocupados com motivações eleitoralistas do que com a implementação de medidas que promovam a melhoria das condições de vida dos seus próprios eleitores. Temos hoje um SNS inadaptado, que não soube acompanhar a evolução demográfica, ignorou as necessidades inerentes a essa metamorfose e nem sequer percebeu que as expectativas de hoje são manifestamente mais exigentes do que há 20 anos.
Soluções paliativas, como as que têm sido apresentadas, pouco ou nada contribuem para a sustentabilidade de um SNS de qualidade. Pelo contrário, geram desconfiança na população, fomentam a ocorrência de eventos adversos graves e enfatizam a desmotropia dos profissionais. Acrescem a isso, políticas remuneratórias que desrespeitam a hierarquia profissional, põem em risco a diferenciação técnico-científica, garante da qualidade da prestação de serviços de saúde, e apenas servem para fomentar o mediatismo ilusório de que “vai ficar tudo bem”.
Não. Não vai ficar tudo bem. Precisamos de reestruturar o SNS, dotá-lo de mecanismos que minimizem os efeitos da pressão a que está sujeito, sem dogmas, fundamentalismos ideológicos ou calabres de soluções criativas.
Necessitamos de uma transformação digital, em rede com todo o sistema de saúde público e privado, fomentar a partilha de dados devidamente autorizados, de modo a proporcionar ao utente uma prestação de cuidados mais eficiente, evitando actos desnecessários.
Necessitamos de desburocratizar o SNS, em particular os cuidados de saúde primários, cujas tarefas obsoletas e inúteis consomem demasiada energia e recursos. Medidas como esta permitiriam adequar os objectivos às necessidades da população, melhorar exponencialmente os resultados da prevenção primária e secundária e diminuir o número de utentes sem acesso a Médico de Família.
Urge negociar com as associações sindicais a reestruturação das carreiras profissionais, pautada por verdadeiros critérios de meritocracia, níveis de desempenho, qualidade da prestação de cuidados e humanização. Torna-se premente melhorar as condições laborais e dos serviços de saúde, prevenindo a desmotivação e o burnout dos profissionais, com notório agravamento da insuficiência de recursos humanos e manifestos riscos para os utentes. É absolutamente necessário dotar o SNS de uma gestão eficiente, que promova a inovação e a avaliação contínua mediante padrões de qualidade definidos pelas entidades reguladoras e ordens profissionais.
Mas não só. Sem receios infundados, nem narrativas facciosas como a do “papão capitalista que come o SNS ao pequeno-almoço”, necessitamos de criar condições para que o sector empresarial privado fomente, ele próprio, uma cultura retributiva que inclua protecção da saúde dos seus colaboradores, através de seguros de saúde, com carácter mutualista ou individual. Isto possibilitaria o alívio da pressão nas listas de espera do SNS, sem os inerentes encargos para os contribuintes.
Medidas impopulares e atentatórias de eventuais interesses corporativos ou geográficos, designadamente a gestão criteriosa de cuidados aos doentes agudos, em áreas geográficas ou profissionais específicas, mobilidade dos profissionais em determinados contextos temporais ou geográficos de carência de recursos humanos, necessitam de negociação em sede de concertação sindical, com o essencial escrutínio das respectivas entidades reguladoras. É isto que se esperava de um governo com todas as condições políticas para o fazer.
Temos que fomentar um debate sobre que caminho queremos para o SNS, transversal a toda a sociedade portuguesa, esclarecedor, apartado de clubismos e demagogias, aproveitando não só a experiência dos profissionais, mas também a visão de quem utiliza o sistema de saúde e é essencial para a sua existência.
O conformismo bacoco que tem acompanhado a actuação dos nossos governantes deve ser veementemente contrariado, não só pelos actores políticos, como pela sociedade em geral, sob pena de assistirmos incautos à destruição do nosso SNS que tanto custou a construir.