Médico, num Hospital Central em Lisboa. A coragem, felizmente, abunda entre os companheiros de trincheira mas é também grande o receio coletivo face à fragilidade deste nosso sistema tão fustigado por sucessivos orçamentos de estado. Todos sabemos que as condições em que trabalhamos nunca foram as ideais mas ainda agora estamos no início e já a falta de material se faz sentir. Máscaras P2 e equipamentos de proteção pessoal parecem nesta fase inaugural bens escassos a ser racionados. Tivemos três semanas para nos prepararmos mas parece que nem assim. Na melhor das hipóteses uma P2 por médico para o dia inteiro num serviço de urgência. Não há a mínima possibilidade de a substituir entre as observações de doentes respiratórios. Podia ter covid? Podia. Mas aquele doente tinha vindo  de Espanha onde ainda só haviam 500 casos e apenas no dia seguinte viria a constar dos critérios para isolamento por suspeição e realização de teste. Será que era? A dúvida iria permanecer por mais 14 dias de introspeção sintomática. Mas logo surge outro, doente, que não disse na triagem que tinha tosse e que só agora, do outro lado da mesa, o revela. Estava febril e vinha de Salamanca. Ponho a máscara, reutilizada. Fui a tempo? Será que devia voltar para casa e para perto da família hoje?

Sentimos todos que não estamos prontos, não temos camas nem ventiladores que cheguem, começamos a preparar a consciência para a realidade terrível das decisões que provavelmente viremos a ter que tomar. Mas a coragem e o espírito de missão presentes vai ganhando força, e as circunstâncias não são para menos.

No meio de tudo isto há tantas coisas que não entendemos. O maior inimigo do pânico infundado parece-me ser a falta de informação clara. Converso com os Médicos de todos os cantos do País e além fronteiras, e as dúvidas são tantas. Os conselhos de peritos reúnem-se,  saem as deliberações das medidas a tomar, mas nem por isso nos sentimos mais tranquilos. Porque não nos explicam melhor as decisões que estão a tomar? As dúvidas são tantas…

Porque é que não estamos a agir agora com conhecimento do que vai acontecer no futuro? Porque não estamos a prevenir em vez de remediar?

Já se percebeu que estamos a seguir o plano que foi seguido na Itália. Que estamos a implementar medidas “proporcionais ao momento” em vez de “proporcionais ao risco futuro”. Que o fecho dos serviços será faseado, mas que, com toda a probabilidade, acabaremos por chegar ao fecho de tudo. Porque é que estamos à espera de termos cada vez mais cadeias de transmissão cada vez mais incontroláveis até o fazer? Porque é que estamos à espera de um momento em que já vamos estar acima da nossa capacidade de actuação para actuar? Porque é que achamos que vamos ser melhores ou diferentes da Itália?

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Porque é que achamos que a nossa capacidade de rastreio e isolamento de casos suspeitos vai ser melhor quando damos por nós no início desta crise já esgotados de meios como as linhas de apoio telefónico, desprovidos de rastreamento de contactos ou impedidos de realizar o número de testes necessário?

Porque é que agora parece que queremos prolongar um surto no tempo em vez de o prevenir? Porque não é possível parar a transmissão e diminuir tanto a altura como a largura do gráfico da curva de transmissão? Mas então porque é que em Macau ou na Singapura foi possível e aqui não será?

Porque é que temos evidência de que o número de casos na China só começou a diminuir uns dias após o “lockdown total” mas aqui não o queremos fazer agora?

É por motivos económicos que não fechamos tudo? Mas se sabemos que vamos chegar a esse lockdown total, que é só uma questão de tempo até a economia parar, porque não pará-la agora? Agora que temos pessoas ainda saudáveis, velhos ainda a viver, sistemas de saúde ainda a funcionar? Agora que nos permitiria ter semanas de surto controlado em vez de meses de caos instalado? Porque não parar essa máquina da economia neste momento, agora que controlamos as variáveis e ainda temos meios de apoio social. Porquê esperar? Não será que esperar apenas significará prolongar um abrandamento no tempo mas que inevitavelmente culminará no seu encerramento? Não será que em vez de perdermos milhões de receitas em algumas semanas não iremos perder biliões em meses e gastar outros tantos em doentes e internamentos e baixas e num estado de emergência social?

E porque é que ainda temos tão poucos casos testados para Covid 19? Porque é que sabemos que as recomendações são para “mass testing” e nós temos das menores taxas de teste na europa?

Porque é que não estamos a alargar a indicação de teste para todos os doentes com sintomas gripais? Se temos cadeias de transmissão activas porque que razão é que apenas testarmos casos graves? Se sabemos que a doença apenas se manifesta de forma grave em 20% dos casos porque é que estamos a perder 80% de diagnósticos que vão continuar a propagar a doença? E nesses 20% graves que vamos testar, porque é que o vamos fazer numa fase tardia da doença quando já estiveram dias e semanas de doença em evolução a disseminar?

É porque não temos capacidade de testar tantos casos? Mas porque é que não estamos a importar as tecnologias de teste asiáticas que permitiram o modelo de testes drive-through a ritmos de 10.000 por dia como na Coreia do Sul?

Gostávamos tanto de ter mais respostas. Resta-nos esperar que eles saibam o que estão a fazer. Os nossos de cá, e os nossos da Europa. Tudo parece apontar para um falhanço Europeu de coordenação e contenção. Porque é que o número de novos casos diários na Europa é já maior do que alguma vez foi na China quando nós temos fronteiras definidas, muito menos habitantes como um todo, e uma densidade populacional incomparavelmente menor? O tempo o dirá.