O sismo de vinte e seis de agosto parece já distante no tempo. Sentido na área metropolitana de Lisboa pouco antes da madrugada, encheu as televisões e as redes sociais durante alguns dias, misturando elogios e acusações. À semelhança do que aconteceu com a intrusão vulcânica da ilha de S. Jorge, ou com os sismos que diariamente assolam a Serra de Santa Bárbara na Ilha Terceira, temos primeiro o susto, depois a sempiterna discussão de estarmos ou não preparados, e por fim o esquecimento. Com a política de novo ao rubro, a discutir o orçamento de estado, é esta uma boa altura para, de uma forma desapaixonada, olharmos para o caminho percorrido nas últimas décadas e para o que falta percorrer.

Progredimos bastante no estudo da geologia da margem portuguesa e da região que circunda os arquipélagos dos Açores e da Madeira. Passámos de uma situação em que a informação existente se restringia essencialmente às áreas próximas de terra, aos estudos baseados na sismicidade histórica ou instrumental, ou aos levantamentos financiados pelos projetos de investigação europeia, para um conhecimento mais sistemático, conduzido essencialmente por organizações nacionais, mas envolvendo equipas de muitos países. O processo de extensão da plataforma teve aqui um papel catalisador.

Depois de uma fase muito centrada na identificação das estruturas capazes de gerar megassismos, a investigação tem procurado compreender a dinâmica profunda da região do Nordeste Atlântico, aqui se incluindo os Açores e a Madeira, ou tem recorrido a modelação matemática complexa procurando estabelecer um quadro geológico tridimensional que reflita o comportamento de uma região que tendo uma sismicidade moderada, é capaz de gerar grandes terremotos. Falta conhecimento sobre estruturas geológicas “em terra” com potencial sísmico, que necessitam mais esforço de investigação, e permanecem incógnitas que talvez o tempo se encarregue de deslindar, sendo a mais intrigante e controversa a identificação da estrutura cuja rutura deu origem ao sismo e ao tsunami de 1755.

Do ponto de vista do sistema de deteção, o progresso é hoje claro. Todas as melhorias disruptivas da rede ocorreram depois de grandes sismos, 1969 no continente ou 1980 nos Açores, mas a qualidade e densidade dos sensores têm melhorado de forma contínua mostrando agora um bom desempenho: quatro minutos depois do sismo de vinte e seis de agosto, já a localização e magnitude eram divulgadas, após validação por um geofísico. As formas de onda medidas pelos sismómetros portugueses foram imediatamente postas à disposição da comunidade nacional e internacional, num exemplo de ciência aberta e de transparência.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

É hoje claro que a gestão centralizada de uma rede de observação por um laboratório de estado, incorporando sensores mantidos por grupos de investigação, é necessária para um desempenho elevado. O passo que falta dar é o da operacionalização de um sistema de alerta precoce, há bastante tempo em teste, que utilize o tempo de rutura da falha para transmitir uma mensagem de alerta que “chegue” mais depressa que o próprio sismo. Estamos neste caso a falar de segundos, mas são segundos que podem ser preciosos. Em sismos mais energéticos podemos estar a falar de alguns minutos. A instalação dos cabos submarinos inteligentes, em curso, dará um novo impulso a este sistema e ampliará ainda mais a antecipação.

O conjunto de ações desenvolvidas pelo sistema de proteção civil foi realizado com muita clareza, o que foi importante para os cidadãos, mas tem ainda de percorrer um caminho semelhante ao que foi aberto por esse outro desastre natural que nos afeta a cada verão: os fogos florestais. O sistema de aviso aos cidadãos foi limitado e insuficiente. Em caso de um evento mais energético no mar, ou idêntico, mas em terra, este tipo de disseminação seria responsabilizado por consequências graves. Existem hoje meios de difundir informação diretamente aos cidadãos, que devem ser instalados, sendo por exemplo possível que as pessoas que estejam numa zona onde um sismo é sentido com uma intensidade que suscite preocupação, sejam imediatamente informadas do que ocorreu. São poucos os exercícios, e é reduzido o conhecimento em escolas e empresas dos procedimentos a adotar. Falta preparação. A serenidade só pode resultar do conhecimento. A ignorância é geradora de pânico.

Mesmo com as melhorias que serão alcançadas no conhecimento científico, nos sistemas de deteção e alerta, e na disseminação e promoção da resiliência pelo sistema de proteção civil, o destino dos portugueses em caso de um sismo catastrófico está traçado. Não “na palma da mão” como canta o fado, mas sim na irregular resistência antissísmica dos edifícios, nas ruas estreitas que de um momento para o outro podem ficar cheias de escombros, no comportamento anárquico que existe sempre que as comunidades não exercitam regularmente o que fazer em caso de um grande sismo. Mesmo com um sistema de alerta precoce operacional, o que ocorrerá seguramente em breve, o seu papel será totalmente inútil se as infraestruturas críticas não estiverem preparadas para atuar de forma rápida e automática. Com ou sem alerta precoce as construções frágeis irão ruir, ceifando vidas e destruindo bens.

Algumas das críticas que se ouviram na comunicação social têm solução possível com recursos limitados. É esse o caso do reforço da capacidade de acesso aos sites, da difusão rápida e dirigida de avisos de emergência ou mesmo do alerta precoce. Mesmo os sistemas que funcionaram bem têm de continuar a ser mantidos e modernizados. Mas está na altura de termos coletivamente uma atitude racional em relação à resistência antissísmica das construções, e das cidades no seu todo, nas áreas de maior perigosidade.

A tarefa afigura-se ciclópica, e é demagógico imaginar um processo que resolva num curto período muitas das fragilidades existentes. Contudo, é possível conceber um programa que identifique as situações mais vulneráveis, escolha as estratégias de reforço mais adequadas, e promova a sua aplicação progressiva. Temos de ter a coragem de reconhecer as fragilidades onde estas existem, sabendo que não as podemos corrigir todas, nem mesmo numa geração. Temos obrigação de definir estratégias para minorar os possíveis efeitos, fazendo a melhor aplicação possível dos recursos existentes e procurando a melhor combinação de tecnologias de reforço.

Para o fazermos não precisamos de “comissões independentes” nem de “grupos de trabalho”. Utilizemos as capacidades existentes nas organizações que foram desenhadas para esse fim. Se for caso disso melhore-se o seu desempenho, juntem-se os recursos possíveis, e deitem-se “as mãos à obra”.