O evento é a Copa do Mundo de 1958, na Suécia. O jogo, Brasil contra a forte União Soviética. Reza a lenda que o técnico brasileiro Vicente Feola parecia ter encontrado o esquema perfeito para derrotar a equipa soviética. A jogada incluía Garrincha, o anjo das pernas tortas de Vinícius de Moraes, que driblaria três russos antes de cruzar a bola para Mazzola marcar de cabeça. Diante de tamanha convicção, o incrível Garrinha perguntou ao treinador: “O senhor já combinou com os russos?”
O resultado da primeira volta das eleições brasileiras parece repetir o folclore futebolístico. Só que neste caso a classe política se esqueceu de combinar com o eleitor. O votante brasileiro relevou nas urnas uma saudável rebeldia que estava em gestação desde as grandes manifestações de 2013. Entretanto, teve de aguardar durante cinco longos anos e suportar a mais grave crise da história do país para quebrar a espinha dorsal do sistema político.
O mapa da apuração dos votos deixou claro que o lulopetismo foi fragosamente derrotado em todas as regiões do país, exceto no Nordeste. Mesmo nesta parte do Brasil, Jair Bolsonaro do Partido Social Liberal (PSL)ficou em segundo lugar. O eleitor deu um não à corrupção, ao aparelhamento do Estado, um não às agendas identitárias explícitas e, sobretudo, um não ao intervencionismo estatal na vida das pessoas e na economia.
A disputa para presidente foi definida no último domingo em favor de Bolsonaro. Disputar a segunda volta com o ex-capitão do exército foi um prémio para Fernando Haddad (PT). O candidato de Lula da Silva, um poste sem luz própria e alavancado pela unção do chefe petista, foi favorecido pelo perfil plebiscitário da eleição presidencial. A polarização ajudou a drenar para Haddad os votos represados na candidatura fake de Lula da Silva. Fora deste cenário, o petista não teria a mínima chance na corrida presidencial.
Nesta altura da disputa, Lula da Silva está convencido do falhanço do seu plano. Mas não se pode esperar do ex-presidente um gesto de grandeza. Orientar seus seguidores para que estes adotem uma estratégia que preserve o país do tensionamento gratuito e o seu partido do persistente desgaste parece ser o mais razoável. Mas, Lula da Silva preocupa-se apenas consigo próprio. A ordem é ampliar a mentira, a farsa. Afinal, o cinismo é a marca do PT, partido movido pela sua insaciável fome de poder.
Confirmado para disputar a segunda volta, o primeiro gesto de Haddad foi acenar para o centro do espectro político. A flexibilização do discurso foi acompanhada de uma visita ao chefe preso em Curitiba. De lá saiu com a ordem de não mais voltar a consultar seu oráculo. Do dia para noite, Haddad deixa de ser Lula. O esforço para atrair eleitores dos candidatos derrotados e retirar votos de Bolsonaro foi acompanhado de uma radical reformulação no aspecto visual da campanha, em que o vermelho do PT cede lugar ao verde e amarelo do Brasil.
Em suma, esconda Lula da Silva e seus radicais; copie a campanha do adversário; abrace o demônio, prometa-lhe cargos e divida com ele nacos do poder; finja ser o oposto daquilo que realmente é. No jogo de vale-tudo do PT só não entra a liberdade de escolha do eleitor. Este demonstrou impressionante disposição para colocar abaixo todo o edifício que sustenta a velha política do Brasil. Como sonâmbulos, os petistas não perceberam que a pressão popular por mudanças, que vinha em crescendo desde 2013, finalmente transbordaria nestas eleições.
A debacle dos caciques
O bolsonarismo passou de onda a tsunami. Na largada da segunda volta, Bolsonaro regista a maior vantagem frente ao seu oponente desde 2002. O ex-capitão do exército já havia surpreendido com uma votação que por pouco não lhe rendeu uma vitória consagradora. Sem dinheiro, estrutura ou tempo de televisão, quebrou paradigmas e impôs novos métodos de se fazer campanha. Ao contrário do que imaginavam políticos, marqueteiros e analistas, o antipetismo refletiu-se também nas disputas pelos governos estaduais e pelos assentos nos legislativos federal e dos estados.
Os candidatos que colaram suas imagens à de Bolsonaro colheram grandesucesso. Seu pequeno PSL, que antes contava com apenas um deputado federal, elegeu 52. O partido conquistou a segunda maior bancada da Câmara dos Deputados. Alguns dos seus candidatos ao legislativo foram os mais sufragados da história do país. Da mesma forma, a exemplo de postulantes ao governo do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, que disputam a segunda volta, tiveram suas candidaturas alavancas após declararem apoio a Bolsonaro.
O desejo popular de mudança da política nacional também pode ser medido pela taxa de renovação do Congresso. Metade da Câmara e 85% do Senado passaram a ser compostos por novatos ou pessoas que estavam fora da política. A alteração fez com que as grandes legendas partidárias tivessem suas representações reduzidas e redistribuídas para outros partidos. A fragmentação fez a quantidade de siglas representadas na Câmara saltar de 25 para 30, e no Senado de 17 para 21.
Em suas agendas cultural e moral, o antipetismo alvejou políticos defensores de agendas identitáriase envolvidos em casos de corrupção. Foram poucos os que se salvaram da guilhotina das urnas. Muitos foram os decapitados pelo voto do eleitor. O caso mais emblemático é a derrota de Dilma Rousseff, que concorreu a um assento no Senado por Minas Gerais. Em 2016, o mandato da ex-presidente foi cassado em razão de ter ela cometido crime de responsabilidade. Entretanto, uma geringonça jurídica foi montada para preservar os direitos políticos da petista.
Salva pelo Senado numa sessão extraordinária presidida pelo Presidente da Suprema Corte, Ricardo Lewandowski, Rousseff não teve a mesma sorte nas urnas. Foi rejeitada pelos eleitores mineiros, que agiram como revisores do erro cometido pelo Senado sob a presidência de Lewandowski. Mais importante: colocaram um ponto final na narrativa segundo a qual o impeachment de Rousseff teria sido um golpe parlamentar. Não foi golpe. A provavelmente pior presidente da história do Brasil e responsável pela atual crise foi cassada por gestão criminosa das finanças públicas.
Guerra de narrativas
Enquanto fenómeno eleitoral, Bolsonaro tem despertado os mais diversos tipos de reações, dentro e fora do Brasil. Quem acompanha os bastidores de uma campanha eleitoral conhece a competência petista para criar narrativas com o propósito de desconstruir o adversário. Como numa caricatura, algum aspeto negativo é sacado e potencializado no discurso. Desse processo, surge, por exemplo, a estratégia de pintar o quadro acabado de um candidato presumidamente fascista. Claro, outras bizarrices foram tramadas e postas em prática.
Sem qualquer julgamento moral, este comportamento faz parte da disputa e é utilizado pela maioria dos candidatos. Tem várias finalidades: agrupar e mobilizar a militância, tirar votos do oponente, galvanizar alianças, atrair eleitores para si próprio, etc. Contudo, o clima de polarização, que neste pleito mostra-se mais estressado que o normal, responde pela histeria instalada na sociedade brasileira. Assim, a menor ameaça às crenças e aos valores de determinadas pessoas ou grupos sociais é logo classificada de autoritarismo e fascismo. A tentativa de assassinar Bolsonaro é prova deste comportamento bestial do eleitor.
Atitudes tresloucadas de populares são compreensíveis, embora inaceitáveis. No entanto, é imperdoável a forma como a imprensa nacional e internacional, há exceções, tratam esta questão. Muitos jornalistas parecem ter abandonado a profissão para assumir o posto de militantes partidários. Compraram, sem qualquer questionamento, o pacote de narrativas embrulhado pelo PT. O combo inclui atuar como caixa de ressonância da perfídia petista e esconder quem de fato é o candidato de Lula da Silva e seu programa de governo.
Por preguiça ou premeditadamente – nesta altura da vida já não acredito mais em ingenuidade –, este tipo de jornalismo presta um tributo à desinformação. O plano de governo de Fernando Haddad, disponível nas páginas do candidato na Internet e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), é revelador do autoritarismo do PT e seu desejo de vingança. Estão expressas medidas para remediar o arrependimento de durante seus governos não ter logrado consolidar o controle sobre os média ou concluído o aparelhamento das instituições que sustentam a democracia no país.
Um pequeno esforço de memória é suficiente para reconstruir a saga de Lula da Silva e Dilma Rousseff. Durante os governos petistas, o rentismo voou em céu de brigadeiro. Os bancos nunca lucraram na história do país. Da mesma forma, seus mandatos operaram em sintonia fina com as grandes corporações empresariais e de classe. Lula foi o grande propagandista das construtoras que espalharam seus tentáculos sujos pela corrupção na América Latina e África.
O país está à beira de um colapso nervoso. É preciso ter responsabilidade com as narrativas, e saber que a difusão de fatos produz novos fatos, sobre os quais muitas vezes não se tem controle.
O esquema de Feola
Nas duas próximas semanas de campanha, os candidatos colocarão em marcha estratégias definidas por suas possibilidades reais no jogo eleitoral. Fernando Haddad usará de todos os meios para evitar uma derrota humilhante para si e para o PT. Vale tudo, lembrem-se. Bolsonaro, que somente perde a eleição para si próprio, buscará manter a curva ascendente de sua votação para legitimar ainda mais sua vitória. A onda ainda não parou de crescer. Isto daria ao ex-capitão do exército margem para negociar reformas com o fragmentado Congresso que emergiu das urnas.
Atrás no placar, Fernando Haddad buscará o jogo e tentará mostrar para seus adeptos que a partida somente acaba quando soa o apito do árbitro: o voto do eleitor. Com a disputa praticamente ganha, Bolsonaro vai tocar a bola para os lados e deixar o tempo passar. Não interessa a quem está ganhando gastar energia nem se expor ao adversário. Assim, não se deve esperar debate entre os candidatos para que suas propostas sejam aprofundadas e submetidas ao escrutínio do eleitor. O perfil plebiscitário da disputa escondeu a agenda Brasil e fez sobressair as questões morais e culturais. O que está em votação é aprovar ou negar o lulopetismo.
Se somente uma catástrofe pode tirar Bolsonaro da presidência do Brasil, o que esperar do seu eventual governo? Há risco de uma reedição da ditadura militar? Os desafios do novo presidente são enormes. É preciso aprovar as reformas da previdência e tributária, implementar um programa de privatização e promover um ajuste fiscal para que o país volte a crescer e possa absorver os quase 13 milhões de desempregados. No entanto, pouco se pode fazer sem a aprovação do Congresso. É nas casas legislativas que estará o grande desafio de Bolsonaro.
A extrema fragmentação do Congresso será uma barreira ao êxito do próximo governo. O novo presidente terá que constituir maioria para aprovar sua pauta de reformas liberais. Apesar da renovação, boa parte do fisiológico “Centrão” foi reeleita. Espera-se que Bolsonaro, do alto de suas quase três décadas de parlamento, tenha capacidade para conduzir o debate. Apesar de pertencer ao “baixo clero” da Câmara, ele vai chegar cacifado e terá pelo menos seis meses de lua-de-mel com o eleitor, tempo suficiente para fazer avançar as reformas.
Quanto ao risco de rutura da ordem política, cabe ressaltar que, para além das falas desajeitadas de Bolsonaro e seu vice-presidente, não há indícios de que venham enveredar pelo caminho da força. E o mais importante, nos últimos anos, as instituições democráticas brasileiras deram provas de resistência a aventuras autoritárias. Longe de ser um fascista ou nazista nos moldes europeus, Bolsonaro se aproxima muito mais do populismo e caudilhismo da tradição latino-americana.
A força de Bolsonaro está na militância do cidadão comum, que abraçou voluntariamente sua candidatura. Sua fala simples traduz os anseios do conservadorismo brasileiro. No maior país católico do mundo, as pessoas estão cansadas do radicalismo progressista adotado no mundo desenvolvido. No Brasil, metade da população vive sem saneamento básico, mas seus partidos progressistas insistem em discutir ideologia de gênero nas escolas.
A mudança de rumos promete ser radical, o que deixa muita gente apreensiva com o futuro. Diante de tantas incertezas, está claro que o governo de Bolsonaro precisará de combinar com os russos para dar certo. Gênio como Garrincha no futebol nunca existiu na política nacional. O 7×1 contra a Alemanha é que é a marca indelével na alma brasileira.
Jornalista e doutorando em Ciência Política e Relações Internacionais no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Pesquisa os desafios do multilateralismo liberal no presente contexto de transformação da ordem mundial.