Dia 9 de Novembro último, Caroline Ellison, apesar dos seus 28 anos (ou talvez exactamente porque só tem 28 anos), CEO de Alameda Research, comunicou por videoconferência aos empregados da empresa que esta estava falida. Alameda Research era um hedge fund especializado, mas pelos vistos não muito, em market-making através de estratégias quantitativas, isto é, do uso de algoritmos de trading. E digo não muito, não porque tenham falido, mas porque, do que vai transparecendo, apesar de afirmarem que a sua área de especialidade era o market-making nos mercados de criptomoedas, parece que as principais apostas consistiam simplesmente em tomar posições arriscadas em projectos relacionados com as cripto-moedas e/ou apostas a longo prazo directamente nas mesmas.
Para os menos familiarizados com a terminologia, market-making é um nome pomposo para o que fazem os stands de carros usados. Se alguém quer vender (ou comprar) um carro em segunda mão pode fazer uma de duas coisas: ou procura um comprador (vendedor) ou vai a um stand de ocasião. A vantagem de ir ao stand é que pode satisfazer a sua pretensão rapidamente. A desvantagem é que provavelmente conseguirá um melhor preço se encontra a contrapartida. O market-maker é alguém que satisfaz rapidamente a necessidade do comprador/vendedor presumivelmente ganhando a diferença entre o que o primeiro está disposto a receber e o que o segundo está disposto a pagar por não terem de esperar. Obviamente que a diferença entre preço de compra e de venda tem que ser suficiente não só para o market-maker obter lucro com a operação, mas também para compensar o risco de se equivocar. Quer dizer, o market-maker não vai acertar sempre, às vezes o tempo que medeia entre a compra e a venda é suficiente para que o preço do item se movimente de forma adversa, pelo que as vezes em que se acerta têm adicionalmente que compensar as vezes em que não se acerta. No caso dos mercados financeiros, onde a diferença entre preço de compra e de venda é amiúde diminuta, para poder ganhar dinheiro, o market-maker precisa de realizar literalmente centenas de operações de compra e venda num segundo, com lucros pequenos mas que, por repetição, permitem acumular um lucro grande quando se acerta muitas vezes, e limitar o montante das perdas quando o mercado se move de forma adversa. No fundo, é uma estratégia que consiste em apanhar pequenas moedas espalhadas pelo chão, pelo que é aconselhável que não se faça diante dum rolo compressor.
Esta era, em teoria, a missão da Alameda Research, ainda que, na prática, a forma como volatilizaram algo em torno de 15 bilhões de dólares (15 mil milhões na Europa Continental) ou bem põe em causa a capacidade de desenhar os algoritmos que não se ponham em frente dum rolo compressor, ou, mais provavelmente, que o grosso dos investimentos fosse simplesmente comprar criptos e esperar que o preço destas subisse. Depois de anos de subidas com poucos sobressaltos na generalidade das criptomoedas, é natural que os traders da Alameda (e de muitos outros sítios) sobrestimassem as suas próprias capacidades. Qualquer pessoa sabe que o mercado de criptomoedas é bastante volátil e, no passado recente, houve quedas abruptas, mas, em retrospectiva, a experiência empírica até finais de 2021 ensinava que, se se mantivessem as posições por um tempo suficiente, estas acabavam por voltar a dar lucro. Assim, que o mais importante para ganhar dinheiro era ter tempo. Quanto mais tempo se pudesse aguentar uma posição maior a possibilidade de êxito, pelo que a Alameda Research dedicou-se à espinhosa missão de conseguir manter as suas posições perdedoras pelo máximo tempo possível. Todo o contrário da estratégia de um market-maker, que consiste em desfazer-se delas o mais depressa possível, mesmo quando isso implica perder dinheiro.
A Alameda Research era um projecto de Sam Bankman-Fried, ou SBF como se lhe chama habitualmente. E a estratégia para conseguir esse tempo passou, intencionalmente ou não, pela criação por parte de SBF de uma exchange de criptomoedas – a FTX (uma exchange é simplesmente uma bolsa de valores, uso o termo por ser mais comum e para as distinguir das bolsas tradicionais). A FTX dedicava-se, antes de falir, a oferecer serviços de intermediação de criptos, quer dizer, era uma plataforma onde compradores e vendedores podem transacionar as suas criptomoedas. Para ser bem sucedida, uma exchange garante aos participantes que a sua transacção se realizará. Nisto é igual a qualquer outro mercado financeiro. Quando alguém compra algo numa bolsa, a sua contrapartida não é o vendedor, é a própria bolsa que, por outro lado, garante a compra ao vendedor. Simplificando um pouco, a única forma de o fazer é se, antes da transacção, o comprador já tenha depositado o dinheiro e o vendedor lhe tenha passado a custódia da criptomoeda. Isto significa que as exchanges recebem depósitos de dinheiro e criptomoedas que necessitam salvaguardar para poder assumir todas as operações de compra e venda que intermedeiam.
Isto de ter depósitos é uma coisa que se associa geralmente aos bancos e não às bolsas, mas a diferença entre os dois é bem menor do que parece. Os primeiros bancos que surgiram em Itália eram intermediários de dívida, dedicando-se habitualmente a intermediar a dívida dos soberanos com os investidores, adiantando ou pedindo adiantado o capital, pagando juros aos depositantes, cobrando-os aos devedores. Ou alguém conhece outro motivo pelo qual uma pessoa na Idade Média deixaria dinheiro em casa de outra para que lho guardasse? Esse, e a necessidade de garantir pagamentos são os únicos motivos. E é aqui que a coisa se põe interessante.
A necessidade de garantir todas as trocas por parte da exchange obriga à manutenção de saldos em dinheiro (e em criptomoedas) para garantir todas as transacções. No entanto, esses valores aí parados representam um custo e uma oportunidade de lucro. Existe uma oportunidade de negócio, que consiste em tratar os depósitos como empréstimos, que podem deste modo ser emprestados a terceiros, afinal de contas, o negócio dos bancos. A FTX oferecia a possibilidade de os investidores alavancarem as suas posições, quer dizer, comprar uma maior quantidade de criptomoedas que as que o saldo em dinheiro permitia ou vice-versa (vender mais criptos). Para fazer isto é preciso garantir, por um lado que o dinheiro dos depósitos (ou das criptos) não foge, quer dizer, que os depositantes não decidem fechar as suas contas e levar os seus pertences e, por outro, que aqueles que perdem dinheiro alavancando-se, nunca perdem dinheiro que não possam devolver. Para evitar a saída dos depositantes um bom incentivo é pagar-lhes um juro. Para evitar andar a correr atrás de perdedores de apostas alavancadas, que podem não querer atender o telefone quando a exchange lhes ligue a pedir que cubram as perdas, é recomendável fechar as suas posições antes que a perda supere o montante que têm depositado para cobrir essa perda. Algo vulgarmente chamado depósito-margem.
Este último aspecto é muito importante porque, a partir do momento em que os depositantes começam a suspeitar que o dinheiro nos cofres (virtuais) é insuficiente para devolver a todos, criam-se as condições para que haja uma corrida aos depósitos. A FTX, como empresa profissional e de êxito que era, tinha sistemas instalados para que isso não sucedesse, pelo que, qualquer investidor alavancado cuja posição chegasse perigosamente perto da margem que tinha depositada para perdas, assistia impotente a como a sua posição era fechada automaticamente no mercado, sem apelo nem agravo, não lhe restando outra alternativa que não fosse assumir essa perda e partir para outra.
Qualquer, qualquer, qualquer investidor não. Lembram-se daquela parte em que eu disse que qualquer posição longa (isto é, compradora em criptomoedas), dado suficiente tempo, acabava por dar lucro? Para permitir esse tempo, esses controlos tão apertados para todos os clientes da FTX foram levantados para a Alameda Research, não coincidentemente, também ela pertencente a SBF, permitindo-lhe suportar perdas durante um tempo indeterminado sem que o algoritmo da FTX lhe fechasse as posições. O problema é que o futuro é incerto e é por isso que, mesmo que o passado nos diga que o preço da criptomoedas (ou do imobiliário, não sei se me estão a perceber) sempre sobe, isso não é uma lei mas uma tendência. Um dia os preços das criptomoedas (ou das casas) teima em continuar a cair, muito para além do tempo que empiricamente julgávamos ser possível.
De acordo com a versão da própria Ellison, quando os preços das criptos começaram a cair, os credores da Alameda Research, quer dizer, investidores que tinham emprestado dinheiro directamente à empresa, começaram a pedir de volta os seus empréstimos. Isto obrigava a Alameda a fechar posições extremadamente perdedoras, talvez já insuficientes para devolver todo o passivo ou encontrar uma alternativa. A alternativa foi pagar a esses investidores alavancando-se (isto é, pedindo emprestado à FTX) contra uma margem que nunca cobriu. Quando a coisa se descobriu por um relatório na CoinBase, foi uma questão de dias (2 salvo erro) até a FTX e a Alameda declararem a falência.
Existe uma questão adicional interessante, mas isto já vai longo. Para dar a aparência de que estava a cobrir a sua posição devedora, a Alameda depositou milhões de FTT na sua conta na FTX. O FTT é uma criptomoeda emitida pela FTX que a própria FTX se comprometia a recomprar com os seus lucros futuros, dando-lhe assim valor no presente. A FTT no fundo era um híbrido entre uma nota bancária e uma acção própria. A FTX emitiu milhões de FTT para dar à Alameda. Emitir notas e/ou aceitar acções próprias como colateral é o tipo de combinação que, quando aparecem questões de solvência, provocam uma espiral de falência num banco. O mesmo sucede para uma exchange, já que em realidade ambas estão sujeitas às mesmas consequências económicas se praticam os mesmos actos.
É fascinante perceber como, em tão curto espaço de tempo, o novo sector financeiro das criptomoedas repetiu os erros do velho sector financeiro dos bancos. Em particular dado que a inerente fragilidade deste modelo de negócio é do conhecimento dos economistas há mais de dois séculos. Não é por isso surpreendente que muitos no sector peçam agora uma regulação que os proteja destes acontecimentos, como o sector bancário fez sempre que uma crise financeira os ameaçou. Todos os sectores financeiros em todo o mundo, resultado de acordos tácitos e explícitos entre governantes e financeiros mais ou menos robustos dependendo do poder que cada uma das partes detêm. É isso o que queremos para o mundo cripto? Relembrando que surgiu exactamente para dar a possibilidade aos seus participantes de estar a salvo da cleptomania estatal.
Entretanto, e sem a esperança de uma intervenção estatal, a maior exchange do mundo – a Binance – ainda ponderou salvar a FTX, assumindo os activos e os passivos desta, diluindo-os no seu próprio balanço. Os ganhos eram óbvios, por um lado aumentava a sua quota de mercado, podendo chegar mesmo a ser num futuro a todo-poderosa mãe de todas as exchanges mundiais, uma espécie de banco-central das criptomoedas e, por outro, daria credibilidade ao sector, cuja reputação se viu profundamente abalada por este escândalo (e por outros similares – Celsius e Terra USD, por exemplo). Afinal, a Binance não avançou. A FTX estava para além de toda a viabilidade.
A regulação parece o caminho a seguir nestes casos, na opinião dos incumbentes do sector. No entanto, neste sistema desregulado (ou melhor dito, espontaneamente organizado) das criptos o ciclo foi doloroso, mas curto, e os prejuízos maioritariamente assumidos por quem correu os riscos (No caso da Celcius, os mal chamados depósitos, em muitos casos remunerados a 20%, foram considerados como empréstimos pelo tribunal). Além disso, existem incentivos para que as empresas que continuam no sector sejam mais transparentes e honestas. A Binance tem-se esforçado por demonstrar que mantêm a 100% a custódia de todos os depósitos e, até ao momento, não sofreu com a corrida aos mesmos por parte dos seus clientes, escaldados com o que sucedeu na FTX. No mundo das criptos ainda não existem empresas too big to fail, os bancos-centrais ainda não encetaram, nem podem, medidas monetárias não-convencionais, nem expandiram de forma exponencial os seus balanços pondo em risco, a prazo, a estabilidade monetária. Os governos ainda não se endividaram para as resgatar, a economia não contraiu, não se socializaram as perdas, nem aumentou o desemprego. Neste momento, SBF foi detido e aguarda julgamento sob fiança, coisa que não sucedeu a nenhum banqueiro nos Estados Unidos em 2007 (pagaram multas).
Não sei se alguns desses banqueiros merecia ter ido para a prisão, essa não é a questão. A questão é que um sector financeiro ultra-regulado não impediu até agora nenhuma bolha de se formar nem de rebentar (como não impedirá a próxima), apenas que o sector financeiro não colapsasse com elas. Por isso aos incumbentes interessa a regulação. Por outro lado, a regulação permitiu a complacência e que a expansão das bolhas durasse mais, se insuflasse mais e causasse mais estragos que o que as exchanges ou os antigos bancos puderam causar. Os ciclos-económicos globais são obviamente consequência de uma economia que se integra a uma escala global, mas também de um sector financeiro que a regulação ajudou a converter em perigo sistémico. A bolha das exchanges, e a velocidade com que alguns dos seus promotores cometeram os mesmos erros que o sector bancário antes deles, é um indício de que os ciclos económicos poderão ser uma consequência inevitável da expansão do crédito não suportada por poupança. O dinheiro é muito mais que uma simples tecnologia, é uma instituição. E as instituições, como disse Adam Fergusson, são o produto da acção humana, mas não do seu desígnio.
Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.