Foi há dez anos que me apresentaram a primeira lista de manuais e materiais escolares para o primeiro ano da minha filha mais velha. Fiquei espantada. Não esperava ter de os comprar, simplesmente porque em Inglaterra, a própria escola me forneceu tudo na primária, e quase tudo no equivalente aos 2º e 3º ciclos.
Na escola primária, só precisávamos de aparecer na escola de manhã, sem trazer nada. Qualquer inglês da minha idade deve lembrar-se da caixa dos lápis de cera, todos castanhos (dentro da casca castanha eram de outras cores), o papel bruto horrível em que desenhávamos, e os cadernos beges em que aprendemos escrever. Depois da primária, só tínhamos de trazer as canetas e os lápis, umas pastas de arquivo para metermos trabalhos, por vezes papel para desenhar e, naturalmente, o mau feitio que é obrigatório nas escolas “comprehensive” da Inglaterra.
No início da cada ano lectivo, emprestavam-nos um manual escolar para cada disciplina e, se não estivessem já encadernados, era nosso dever cobri-los com papel de parede ou de embrulho, e, mais tarde, plástico, para os proteger. Também escrevíamos os nossos nomes dentro da capa, acrescentando-os a uma lista onde havia às vezes nomes de alunos dos anos 60. Falo dos anos 80.
A literatura, as línguas e até as ciências não mudam assim tão rapidamente para que os manuais antigos fiquem desactualizados todos os anos. Aprendemos francês por meio de livros que contavam a história de uma família Bertillon, que vivia num apartamento parisiense suburbano, muito dos anos 60. Estudámos os escritores dos séculos 19 e 20, e claro, Shakespeare, utilizando livros já bem manuseados ao longo dos anos.
Foi só ao entrar na universidade que precisámos de comprar tudo.
Dez anos passaram e ainda estou surpreendida, mais: estou chocada pela grande vigarice dos manuais escolares em Portugal.
Porque é que ninguém acaba com isto? Todos os anos, em Setembro, ficamos reféns não só das exigências dos nossos filhos, ansiosos pelos materiais mais bonitos, mas das exigências das escolas em termos dos manuais novos que temos de comprar, e que quase nunca são os que o nosso filho mais velho utilizou dois anos antes. É quase impossível passar um manual de um filho para outro. Em dez anos, nunca consegui fazer isso.
E depois, há os “cadernos práticos”, que passam o ano praticamente limpos, mas que adicionam mais €50-€100 à conta de cada criança. Nunca vi um único desses cadernos totalmente usado.
É bom que existam bancos de livros e que cresçam de ano para ano, mas imagino que deva ser difícil para os pais que trabalham e que ganham pouco, especialmente os que vivem fora das grandes cidades. Como encontram tempo e recursos para se dedicarem à procura dos manuais certos? Muitos dos manuais ficarão obsoletos de qualquer maneira. Não é porque as leis da física (nem das outras ciências e humanidades) tenham mudado nos últimos 12 meses, mas porque o livro foi repaginado e reeditado (ligeiramente) e é (aparentemente) impensável que os alunos utilizem manuais ligeiramente diferentes uns dos outros.
Considerando o rendimento médio em Portugal, a despesa anual nos manuais de uma criança (e não esqueçamos os custos dos materiais) pode facilmente chegar ao equivalente do rendimento mensal de um dos pais. Como pode ser isto justo? A maior parte dos pais estão indignados com este assunto. Quase ninguém acha que é razoável que quem ganha €500 por mês gaste uma quantia equivalente de uma só vez em livros, mas o escândalo mantém-se, anualmente.
Mas deus proteja quem fizer queixas (abertamente) de professores que mudam de ideias regularmente quanto à sua editora preferida. Ou das editoras que só sobrevivem por causa das suas vendas de centenas e centenas de milhares de manuais a cada ano.
Não seria assim tão complicado reparar a situação? Talvez bastasse que nós, os pais de hoje, estivéssemos dispostos a fazer um favor aos pais de amanhã. O plano poderia ser este: ao longo de dois ou três anos, obrigávamos os nossos filhos a cuidarem dos livros; no fim, doávamos os livros às escolas, em massa, para serem utilizados no ano lectivo seguinte; uma vez que houvesse “stocks” suficientes, incitávamos todos os pais a recusar comprar livros novos – e aposto que não levaria muito tempo para que o sistema mudasse. O ministério, os professores e as editoras talvez fossem tomados de um pânico suficiente grande para tentarem encontrar outra maneira de fornecer informação aos alunos.
Claro, parece injusto, nós termos de pagar livros para os outros. Mas não seria tão injusto como obrigar centenas de milhares de famílias com rendimentos baixos pagarem percentagens gigantescas dos seus salários para manuais, todos os anos.
(traduzido do original inglês pela autora)
The annual scandal.
Ten years ago, I was handed my first list of schoolbooks and materials to buy for my eldest daughters’ first year at school. I was surprised. It hadn’t even occurred to me that I would have to buy them, simply because when I was a kid in England, the schools had provided everything at primary level and almost everything at secondary level.
At primary school, all we had to bring to school was ourselves. Anyone of my age will remember the box of brown crayons (on the inside, they were still other colours), the horrible sugar paper to draw on, and the beige landscape workbooks in which we learned to write. At secondary school, we just had to bring pens, pencils, folders for coursework, sometimes paper for artwork and, naturally, the bad attitude that was de rigueur in the comprehensive schools of England.
At the beginning of every school year, we would be lent a schoolbook for each subject, and, if it wasn’t still covered from last year, we had to cover it with wallpaper or wrapping paper, and only later, plastic, to protect it. We would also write our names inside, and our names might join a long list of other names, as some of the books dated back to the 1960s. This was the 1980s.
Literature, languages and even sciences don’t change at such a rate that it was a problem (they still don’t). We learned French using books that told of the Bertillon Family, who lived in a perfect 1960s suburban Paris flat. We learned about literature with 19th and 20th century authors, plus, of course, Shakespeare, using well thumbed books that were cycled through, year after year.
It was only when we got to university that we had to buy everything for ourselves.
Ten years on, and I’m still surprised, but more, I’m mystified by the continuing Portuguese schoolbook swindle. I’m mystified because no one makes it stop. Every September, we are held hostage, not only to our children’s demands for the best looking stationery, but to the schools’ demands for new schoolbooks, which are almost never the same as the book your older child used two years ago, so it’s almost impossible to hand a book down. In ten years, I haven’t once been able to pass one book from a child to another.
Then there are the virtually unused accompanying workbooks which can add another €50-€100 per child, unnecessarily. My kids’ workbooks usually end the year with just the first few pages touched.
It’s a great thing that book banks have begun to spring up over the last few years, but by god, how do working people on a low income, especially outside of big cities, have the time and resources to spend hours and days to go out looking for the right books? Many of the books will be obsolete anyway. Not because the laws of physics or any of the other sciences and humanities have changed in the last 12 months, but because the book has been repaginated and edited (slightly) and it would be unthinkable (apparently) to have kids using slightly different schoolbooks.
Considering the average income in Portugal, the annual spend on one child’s schoolbooks (and add to that the stationery) can easily be one parent’s monthly income. How on earth is that acceptable, or fair? The stupid thing is that most people are indignant about it. Hardly anyone thinks it’s reasonable to expect someone who earns €500 per month to pay out €500 on books, yet the scandal continues.
But god forbid anyone complain (out in the open) about teachers who seem to change their minds regularly and on a whim about which publisher they will use this year. Nor about the publishers, many of whom live on only because they produce hundreds and hundreds of thousands of schoolbooks each year.
It wouldn’t even be that complicated to fix, if we parents decided to do a service to future parents. If, over just two or three years we made sure that this year’s books remained well kept, and then donated them to the school, en masse, for use the following year, then started to refuse to buy more books, it wouldn’t take long for the system to change. The ministry, the teachers and the publishers would panic and would have to find another way.
Of course, it might seem unfair, our buying books now so that future parents wouldn’t have.
Maybe it would be, but not as unfair as making hundreds of thousands of families on low incomes fork out massive percentages of their incomes for books, every single year.