Ainda sobre habitação. Muito se tem perguntado o que é que o Estado pode fazer – um vício induzido deliberadamente na populaça pelos mesmos governantes que, cruzando o país na liteira da televisão, atiram sobre nós “medidas”. Quanto menos esses governantes souberem do assunto, mais abundantes os “pacotes” com “medidas”. Os bolsos de António Costa deitam “medidas” pelas costuras. Ninguém gasta dez minutos a pensar sobre o que o Estado não deve fazer: a Operação de Entrecampos é um exemplo nessa categoria. Falamos dos terrenos da antiga Feira Popular, vagos desde 2003, quando a feira fechou. Um rectângulo com cerca de 50 mil metros quadrados (aproximadamente 10 campos de futebol). O topo Norte é definido pela rotunda de Entrecampos, onde está o monumento aos heróis da Guerra Peninsular, e pela Avenida das Forças Armadas. A Sul, o terreno acaba na linha do combóio. O lado Nascente confina com a Avenida da República e o lado Poente com a Avenida 5 de Outubro. Na verdade, a Operação Integrada de Entrecampos (este é o seu nome completo) inclui mais área, para disfarçar; traçaram um polígono que sobe pela Avenida Álvaro Pais, um pedaço já muito contruído. Mas o caroço está cá em baixo, neste rectângulo vazio.
É uma zona de Lisboa bem servida de transportes colectivos, uma espécie de interface com metro, combóio, e várias linhas de autocarro. Mesmo assim, já está demasiado pressionada, com excesso de construção, excesso de escritórios, e uma infra-estrutura viária que não aguenta. O rectângulo corre adossado à ossatura basilar da cidade, o seu eixo central, numa articulação que assegura muitas ligações. A Avenida das Forças Armadas, no percurso quase obrigatório de quem vai de Nascente para Poente, está congestionada de trânsito a qualquer hora do dia. No terreno da antiga Feira Popular devia fazer-se um jardim – caso a esquerda pusesse o dinheiro onde tem a boca. Sendo uma das zonas mais caras da cidade, e para cicatrizar uma ferida com 5 hectares aberta desde 2003, só uma decisão política informada e forte seria capaz de trazer para ali um jardim. No prolongamento do Campo Grande, era a oportunidade de reforçar o cordão verde, aliviar a pressão, e criar uma zona de lazer sombreada e ao ar livre. Em vez disso, Fernando Medina decidiu para ali “a maior operação urbanística desde a Expo 98”. Um erro, como veremos.
O terreno foi vendido em hasta pública a um grupo privado, em Dezembro de 2018, com autorização para construir cerca de 173 mil metros quadrados. Sem contar com áreas técnicas e estacionamento. Se as somarmos, como devemos somar, teremos ao todo 236 mil metros quadrados de construção, só ali, naquele rectângulo. Uma brutalidade. Fernando Medina gabava-se de que ia trazer para Entrecampos mais 17 mil pessoas; para um local já excessivamente populoso de uma cidade com cerca de 550 mil. É a bravata ignorante de um irresponsável. Devia gabar-se de as tirar de lá. Mas a pior notícia é que ele destinou 30% para habitação e 70% para comércio e escritórios. Leu bem, não me enganei. Como é evidente, do ponto de vista da prioridade que a própria esquerda dá à habitação, devia ser ao contrário.
Em 2018 já se sabia dos problemas de habitação em Lisboa, sobretudo da falta de casas a preços comportáveis pela classe média. Era preciso inundar o mercado. Mais: Helena Roseta já tinha sido chamada pelo governo de Costa para se encarregar deste assunto; entregou o projecto de Lei de Bases da Habitação em Abril de 2018. Ao mesmo tempo, Fernando Medina e Manuel Salgado mancomunavam-se para a Operação de Entrecampos, onde este espantoso par de patriotas autorizou um grupo privado a construir 30% de habitação e 70% de comércio e escritórios. O vício, sempre o vício; “deixar obra” é o primeiro impulso dos pequenos tiranetes, e a Operação de Entrecampos é a obra política de Fernando Medina. Uma decisão urbanística determinante e uma enorme pancada no centro de Lisboa. Esta é a mesma esquerda, e o mesmo Partido Socialista, que hoje propõe confiscar os privados porque há falta de habitação.