1. O Eng. Manuel Vicente, cidadão angolano que já foi vice-presidente de Angola, recorreu de um despacho judicial proferido no processo em que o Ministério Público o acusou de crimes de corrupção activa, branqueamento de capitais e falsificação de documentos, porquanto vira desatendido o seguinte: i) a sua imunidade relativamente à acção penal exercida na jurisdição portuguesa; ii) o seu pedido de que os autos pendentes em Portugal fossem, quanto a ele, delegados na República de Angola.
2. O Tribunal da Relação de Lisboa – por Acórdão de 10 de Maio de 2018, subscrito pelos Desembargadores Cláudio Ximenes e Manuel Almeida Cabral – indeferiu o pedido de declaração de imunidade, mas deferiu o pedido de delegação na República de Angola da continuação do processo, na parte que àquele diz respeito.
3. O Presidente da República, o primeiro-ministro e o ministro dos Negócios Estrangeiros congratularam-se com esse resultado: “Havendo transferência, se for esse o caso, desaparece o ‘irritante’ (…).Sempre achei que os países estavam vocacionados a encontrar-se”; “Estão em causa centenas de milhares de pessoas, portugueses e angolanos. (…) isso é tão forte, tão forte, tão forte, que é mais forte do que tudo.” (Marcelo Rebelo de Sousa); “Fico feliz que o único ‘irritante’ desapareça” (António Costa); “Esta decisão permite que a relação entre Portugal e Angola passe para o nível mais alto possível do relacionamento” (Augusto Santos Silva).
4. Em Angola, na conta oficial do Twitter, o presidente João Lourenço referiu o telefonema que logo tivera com o seu homólogo português, dizendo que os dois se felicitaram “pelo feliz desfecho do caso”. O Jornal de Angola festejou “a vitória” do presidente angolano. E Francisco Queirós, ministro da Justiça, referiu que a decisão não apanhou o governo angolano de surpresa, porque “a única surpresa é ter decorrido este tempo todo, com o desgaste que provocou”.
5. Em Portugal, em geral, os responsáveis políticos, os jornalistas e os comentadores pronunciaram-se favoravelmente em relação a este desfecho, que teria permitido pôr a salvo as relações entre os dois países. Ou nada disseram.
Houve naturalmente excepções. Dei por Ana Gomes, que foi contundente na denúncia daquilo que considerou ser uma derrota da justiça, e por Catarina Martins, que se mostrou perturbada com a decisão e com as expressões de felicidade subsequentes, bem como pelas reacções de associações cívicas de Portugal e de Angola (João Paulo Batalha, pela “Transparência e Integridade”, e David Mendes, pela “Mãos Livres”). E ainda pelos artigos de David Dinis (“Aceitando a Justiça, podemos rir-nos dela?”, no Público de 11 de Maio) e de Luís Rosa (“Uma ‘irritante’ falta de espinha direita”, no Observador de 14 de Maio).
6. Entretanto, o assunto já saiu da agenda e a decisão aparenta não suscitar qualquer polémica, dúvida ou sequer irritação. Parece que Angola nos vai abrir os braços, e nós cá continuaremos a lutar com firmeza contra os corruptos locais.
Acontece que o acórdão do Tribunal da Relação é insustentável, reflecte uma cultura de aversão a qualquer ideia de justiça substancial, apouca o combate contra a corrupção e desprestigia a justiça portuguesa. Na minha avaliação, é claro.
7. Durante meses, escreveu-se que a imunidade de Manuel Vicente decorreria de tratados internacionais, convenções bilaterais e da lei angolana, que Portugal teria a obrigação de respeitar. A Relação de Lisboa veio, ao menos, reconhecer que nada disso é verdade, uma vez que o tema só merece ser analisado à luz do costume internacional. O acórdão admite que ele gozaria de imunidade enquanto fosse vice-presidente, mas que esse privilégio teria deixado de existir quando cessou funções em Setembro de 2017.
Não estou de acordo que haja um costume internacional que consagre uma imunidade para os vice-presidentes dos Estados (basta lembrar que, ainda em 2017, o vice-presidente da Guiné Equatorial foi julgado e condenado em França), mas admito que essa questão não seja líquida. Porém, é incontroverso que, cessadas tais funções, ademais relativamente a actos da esfera privada e praticados antes do exercício do cargo – como acontece com os factos imputados a Manuel Vicente –, este não goza de qualquer imunidade. E isso foi, e bem, reconhecido pelo Tribunal da Relação: “Em conclusão, o entendimento adoptado na decisão recorrida de que o recorrente não beneficiava de imunidade à jurisdição portuguesa pelos factos que lhe são imputados no processo(…)está de acordo com o direito internacional e não violou nenhuma norma da Constituição portuguesa”.
8. A questão seguinte – aquela em que Manuel Vicente e o presidente de Angola, João Lourenço, obtiveram uma retumbante vitória – tinha a ver com a delegação do prosseguimento do processo na República de Angola.
9. O Ministério Público e o tribunal de 1.ª instância tinham entendido que, nas circunstâncias deste caso, não existiam condições para aceitar que o processo fosse transferido para Angola.
Porquê? Porque não estava preenchido o requisito de que tal delegação se justificava pelo “interesse da boa administração da justiça”.
E porquê? Porque, indo ao fundamental, não havia nenhuma garantia de que Manuel Vicente pudesse ser julgado naquele país, uma vez que, para além de gozar de um período de 5 anos de imunidade local, de qualquer modo beneficiaria de uma amnistia que em 2016 foi aprovada em Angola, a qual abrangeu todos os crimes comuns puníveis com pena de prisão até 12 anos, cometidos por cidadãos nacionais ou estrangeiros, como acontece com todos os crimes que lhe são atribuídos.
10. A Procuradoria Geral de Angola admitiu expressamente que os crimes imputados a Manuel Vicente estavam abrangidos pela amnistia: “Saber em concreto, se os factos elencados no V/ofício, ocorridos em Portugal, são abrangidos pela Amnistia prevista na Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto, se tiver lugar a delegação do procedimento penal nas autoridades judiciárias angolanas, a resposta é sim, são abrangidos pela amnistia.” (in ofício do PGR de Angola à PGR de Portugal, em 20/01/2017). Aliás, nesse ofício é remetido a Portugal um parecer (elaborado por juristas angolanos) sobre a situação em abstracto, onde se conclui o seguinte: “se o facto objeto do procedimento penal que se requer, sendo crime também à face da lei angolana, preencher os requisitos da Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto, isto é, estiver por ela amnistiado, o pedido de cooperação nesse âmbito não é admissível por falta de uma das condições que é a sua punibilidade no direito pátrio.”.
11. De resto, basta ler, na sua simplicidade e clareza, a lei da amnistia em causa, para compreender que tais crimes estariam obrigatoriamente sob a sua alçada, a qual só não seria aplicada se Manuel Vicente a recusasse, o que até agora não fez nem anunciou sequer ponderar fazer.
12. Neste contexto, como é possível que tenha sido delegado o prosseguimento da acção penal contra Manuel Vicente à justiça angolana, quando o único juízo de prognose possível é o de que não haverá julgamento em Angola?
O acórdão tem perfeita consciência do problema: “A boa administração da justiça é um conceito que não está definido. Mas, de um modo geral, podemos dizer que há boa administração da justiça quando a decisão é dada de acordo com a lei e os factos que a prova que se conseguiu produzir permite ao juiz considerar provados, através de procedimento em que a acusação e a defesa tiveram oportunidade de exercer os direitos que a lei lhes confere”.
Ainda assim, deferiu a delegação na República de Angola, com os seguintes fundamentos: i) porque a extinção do procedimento criminal pela amnistia é conforme aos princípios jurídicos vigentes em Angola e em Portugal; ii) porque seria difícil assegurar o julgamento em Portugal, havendo pouca probabilidade de êxito no recurso ao mecanismo da contumácia; iii) porque, sendo condenado, Manuel Vicente terá melhores condições de reinserção social no seu país.
13. Impressiona a argumentação, porque cada um dos argumentos utilizados demonstra precisamente o contrário daquilo para que foi utilizado.
Não está em causa que Angola possa amnistiar os crimes que entender, de acordo com o juízo político efectuado pelos seus órgãos de soberania. Mas, podendo e devendo o tribunal fazer um juízo de prognose de que a amnistia será aplicada à situação de Manuel Vicente, defrauda os princípios subjacentes à cooperação judiciária tal procedimento de delegação, o qual está previsto na lei precisamente para que o julgamento se faça no Estado delegado e não para que não se faça.
Quanto à eventual pouca eficácia do regime de contumácia a que Manuel Vicente haveria de ser sujeito se não tivesse ocorrido esta transferência, é surpreendente a sua invocação, a qual só seria pertinente se estivesse assegurada uma melhor alternativa, ou seja, a de que ocorreria um julgamento em Angola.
Finalmente, a referência às melhores condições de reinserção social em Angola não passa de um eufemismo, porque, em face da amnistia aplicável, Manuel Vicente não só não será condenado, como nem sequer julgado.
Foi por isso oportuna e contundente a pergunta do director do Público, David Dinis: “Aceitando a justiça, podemos rirmo-nos dela?”.
14. Há ainda uma circunstância adicional que inviabiliza o argumento de que a boa administração da justiça se fará melhor em Angola. É que a acusação a Manuel Vicente – gravíssima, porque a alegada corrupção terá sido dirigida a um Procurador da República que investigava condutas delituosas daquele sob a alçada da lei portuguesa – tem de ser avaliada em face de factos ocorridos em Portugal e de supostas práticas de outras pessoas, designadamente do magistrado visado, as quais vivem em Portugal e aqui estão a ser julgadas.
15. Justiça substancial através de um processo justo.
É aquilo que devemos esperar de qualquer sistema de justiça. É isso que devemos exigir no combate à corrupção, tão difícil, mas tão necessário, quer em Angola, quer em Portugal, respeitando os princípios de um processo equitativo, que permita condenar os culpados e absolver os inocentes.
Foi o que não foi assegurado em relação a Manuel Vicente, sem que isso obviamente traduza qualquer opinião (que não tenho) em relação à sua inocência ou culpabilidade, bem como em relação a todos os outros que, na Operação Fizz, estão a ser julgados em Lisboa.
16. Os responsáveis políticos portugueses estiveram bem quando sustentaram – e sempre o fizeram – que a questão da delegação do processo para Angola era uma matéria da justiça e não do Governo.
Contudo, essa neutralidade não chega. É que, quando o presidente João Lourenço alegou que Portugal não confiava na justiça angolana e isso era ofensivo para Angola, o que não poderia deixar de ter repercussões nas relações entre os dois países, não se ouviu uma voz firme que – mesmo com todas as cautelas diplomáticas para não ferir desnecessariamente quaisquer susceptibilidades – viesse dizer que não era verdade que a justiça portuguesa estivesse a agir desrespeitosamente, mas apenas a cuidar daquilo que, na sua óptica, melhor assegurava a boa administração da justiça.
Por outro lado, devia ter sido vigorosamente repudiada a ideia de que o relacionamento entre portugueses e angolanos pudesse estar dependente de um privilégio a conceder ao cidadão Manuel Vicente. Isso foi profundamente injusto e cheirou a “chantagem”. De cabeça baixa, olhos no chão e espinha dobrada, foi como nos pusemos, o que não é bom para o futuro das relações entre Portugal e Angola.
Acresce a gravidade do precedente gerado, cujas consequências não foram ainda avaliadas. O que se vai fazer em relação aos angolanos (residentes no seu país) que sejam suspeitos – e há vários nessa situação – de crimes económicos ou de outros igualmente sob a alçada da lei da amnistia angolana? Remetem-se esses processos para Angola e ficamos à espera de ver declarada a extinção da sua eventual responsabilidade criminal?
17. O combate à corrupção tem enormes implicações económicas, mas é, antes de mais, uma luta por valores de que não se deve abdicar. Este caso evidencia como essa luta pode soçobrar quando depara com interesses que falam mais alto. Triste sina.