1 Em novembro de 1995, recebi, no meu escritório, um telefonema de Alexandre Patrício Gouveia, que não conhecia. Apresentou-se como irmão de António Patrício Gouveia, falecido em 1980 no desastre que, em Camarate, vitimara igualmente, entre outros, Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa. Pedia-me para ter uma reunião com ele e outros representantes dos familiares das vítimas. Queria que os patrocinasse no processo então pendente nos tribunais.

2 Adverti-o da minha convicção de que sucedera um lamentável acidente, sem que tivesse havido sabotagem ou qualquer crime (pelo menos doloso). Nessas circunstâncias, eu não seria a pessoa indicada. Ele insistiu – Patrício Gouveia insistia sempre quando estava convencido da justiça dos seus propósitos – e pediu-me para analisar o que tinham para me mostrar e depois decidisse. Assim fiz.

Os familiares das vítimas tinham 5 dias de prazo para reagir ao despacho final do Ministério Público, que arquivara o caso. Atenta a urgência, desloquei-me nessa mesma noite à sua residência, na Travessa do Jasmim – longe de supor que esse seria, durante mais de 20 anos, um local de encontros renovados, quase sempre por causa de Camarate –, onde fui encontrar alguns dos seus representantes. Recordo, se não me falha a memória, a presença de Alexandre Bettencourt, Augusto Cid, Jorge Xavier de Brito, José Luís Ramos, José Ribeiro e Castro, Manuela Vaz Pires, Marcelo Rebelo de Sousa e Miguel Horta e Costa.

3 Seguiram-se 5 dias e 5 noites de estudo do processo, acompanhado por alguns deles. Fiquei surpreendido e estarrecido. Por um lado, pela incúria e desleixo de uma investigação que, a partir de certo momento, já só servia para tapar os buracos de explicações que não convenciam ninguém. Por outro lado, pela existência de uma prova sólida acerca da probabilidade séria de que fora cometido um crime. Tive dúvidas, que mantenho, sobre a autoria e o móbil do crime.

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Mas fiquei desde então plenamente convencido que o Cessna não caíra, à descolagem (!), por falta de gasolina (era essa a inusitada explicação oficial), mas devido a uma sabotagem provocada pelo rebentamento de um engenho explosivo. Em nome dos familiares das vítimas, deduzi a acusação particular.

4 Desde essa altura, passei a estar regularmente com o Alexandre Patrício Gouveia. Sem desconsiderar os restantes intervenientes (particularmente, o contributo inolvidável e determinante de Augusto Cid), Patrício Gouveia foi a alma de um combate pela verdade do que aconteceu em Camarate.

Não conseguimos a realização do almejado julgamento público, mas julgo que contribuímos para repor a verdade. Em 2005, quando os trabalhos da VIII Comissão Parlamentar de Inquérito foram apresentados a Souto Moura, à data procurador-geral da República, ouvimos dele o reconhecimento da importância dos novos elementos recolhidos. Seriam suscetíveis de permitir a reabertura do processo, a qual, todavia, já não seria possível por causa da prescrição entretanto ocorrida.

5 Mesmo confrontado com essa prescrição, Patrício Gouveia não quis parar. Continuou a trabalhar, sobretudo na tentativa de descobrir quem teriam sido os mandantes do atentado. Foi já em 2019, com prefácio de Diogo Freitas do Amaral, que Patrício Gouveia escreveu “Os mandantes do atentado de Camarate – o envolvimento americano”, que explora a hipótese — plausível — do atentado ter tido origem em pessoas ligadas à administração de Ronald Reagan.

Teve o cuidado de advertir que trabalhava numa hipótese, ainda sem provas definitivas. Escreveu: “As pessoas em causa não foram julgadas e têm direito a uma presunção legal de inocência, mas como autor deste livro, e irmão de uma das vítimas de Camarate, tenho também o direito de apresentar esta visão histórica acerca destes acontecimentos”.

O livro teve uma 2.ª edição, aumentada, em setembro de 2022. Foi esse o derradeiro testemunho da sua perseverança para que fosse feita justiça à memória do seu irmão António e dos seus companheiros dessa trágica noite.

6 Patrício Gouveia era um lutador incansável, às vezes até desconcertante. Camarate foi um processo em que o acompanhei de perto, mas vi essa marca do seu carácter em muitas outras ocasiões. Particularmente impressionante foi o seu empenho na defesa de dois desígnios que o guiavam: o amor a Portugal e a sua enorme fé cristã e católica.

Por eles lançou aquilo que viria a ser a Fundação Batalha de Aljubarrota. Foi ele quem conseguiu que António Champalimaud a patrocinasse e foi ele quem, desde o primeiro dia e até ao dia da sua morte, esteve à frente dela, lutando pela consolidação desse magnífico projeto de homenagem à história de Portugal e a Nuno Álvares Pereira, de sua especial devoção.

Depois disso, foram lançados outros empreendimentos com vista à recuperação dos locais históricos das batalhas onde Portugal defendeu a sua independência, desde Atoleiros a Montes Claros. No sábado passado, véspera da sua morte, tive o enorme gosto de ter visto numa livraria a sua derradeira obra, “D. Nuno Álvares Pereira – O início da crise de 1383 – 1385: A Batalha dos Atoleiros”, cujo lançamento está previsto para este mês de março.

7 Eu não sabia que Alexandre Patrício Gouveia estava doente. Em dezembro passado ainda trocámos calorosos votos de feliz Natal. Sei agora como foi vítima de uma doença prolongada, da qual nunca o vi queixar-se.

Guardarei dele sempre a memória de um homem fiel àquilo em que genuinamente acreditava.