1Fui, em 1972 e 1973, aluno de Paulo Pitta e Cunha na Faculdade de Direito de Lisboa. Mais tarde, também no mestrado. Fui igualmente seu assistente em várias cadeiras do grupo das ciências jurídico-económicas, após a reestruturação da Faculdade de 1977/1978. Não quero deixar passar a sua morte sem lhe prestar o tributo público da minha homenagem, plena de admiração e reconhecimento.

2Em 1972, quando o conheci como aluno, Pitta e Cunha tinha acabado de se doutorar com a tese “Expansão e estabilidade: os dilemas da política macroeconómica”, obra ímpar da literatura económica então produzida, a qual, curiosamente, ganha de novo atualidade perante os dilemas com que Portugal hoje se defronta.

Nessa altura, Pitta e Cunha debruçava-se sobretudo sobre temas da economia monetária internacional e das políticas macroeconómicas, constituindo com outros jovens doutorados da Faculdade de Direito de Lisboa – como Alberto Xavier, António L. Sousa Franco e Diogo Freitas do Amaral (tive o privilégio de ser discípulo de todos) – um grupo à época muito importante na consagração de uma corrente de pensamento modernizadora e desenvolvimentista, que viria a ter na SEDES o seu expoente.

3Mais tarde, Pitta e Cunha infletiu a sua produção científica para as áreas da fiscalidade e dos estudos europeus, onde nos deixa uma obra incontornável, de atualidade, rigor, clareza e profundidade, imprescindível para quem quiser estudar estes temas.

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No âmbito fiscal, veio a presidir à Comissão da Reforma Fiscal de 1984-1988, de cujo labor nasceu a criação do IRS e do IRC, que modernizaram o sistema fiscal português, abandonando, finalmente, um velho sistema cedular que vinha do século XIX, completamente desajustado das necessidades do país e dos parâmetros vigentes nos países da CEE, a que acabávamos de aderir. Foi ainda Presidente do Conselho Diretivo da Associação Fiscal Portuguesa (depois do Conselho Científico e do Conselho Geral), contribuindo decisivamente para o prestígio dessa instituição (hoje presidida, igualmente com grande mérito e sucesso, por Rogério Fernandes Ferreira).

Nos estudos europeus, Pitta e Cunha foi fundador, em 1978, da Inteuropa – Associação Portuguesa para o Estudo da Integração Europeia, e, em 1980, do Conselho Português do Movimento Europeu. Depois, criou, na Faculdade de Direito de Lisboa, o Instituto Europeu, a que presidiu e consolidou como uma referência maior nessa área do conhecimento.

4Quando fui seu aluno na cadeira de Economia Política, propus-me fazer um trabalho sobre o marxismo, numa avaliação das suas consequências políticas, económicas e filosóficas, que vim a apresentar para exame final. Nessa época, o marxismo impregnava todo o movimento estudantil, mas, na academia, era estudado com desconfiança e algum preconceito. Pitta e Cunha deu-me inteira liberdade nessa reflexão, apoiando-me e incentivando-me nos meandros da investigação. Não me assumi marxista (que nunca fui), mas enalteci o mérito e a pertinência da obra de Karl Marx. Foi muito reconfortante ver a abertura com que o professor, já doutorado, aceitava debater com um aluno que dava os seus primeiros passos, ainda para mais em matérias então polémicas.

5A esse propósito, recordo que Pitta e Cunha – em termos inovadores em Portugal – já abordava os principais problemas estruturais da economia dos países socialistas (assim denominados), chamando a atenção para a forma como os mecanismos do mercado estavam paulatinamente a ser introduzidos na URSS e na Europa de Leste em termos que ele via como irreversíveis e que, inevitavelmente, haveriam de desembocar na necessidade do socialismo, para sobreviver, ter de integrar uma economia de mercado. No fundo, aquilo que vinte anos mais tarde Gorbatchov haveria de defender com a “perestroika”.

6Após o 25 de Abril, a Faculdade de Direito de Lisboa entrou numa grave agonia, tendo ocorrido o saneamento de praticamente todo o seu corpo docente. Depois do radicalismo revolucionário, fomentado sobretudo pelo MRPP, a Faculdade reergueu-se com a Comissão de Reestruturação, aprovada pelo ministro da Educação, Mário Sottomayor Cardia. Pitta e Cunha integrou-a e foi um elemento fundamental na criação das bases do que se seguiu. Foi nessa altura que, já licenciado, voltei a estar com ele. O “bichinho” da advocacia germinava em mim, mas Pitta e Cunha incentivou-me a que eu me apresentasse no concurso público a partir do qual os assistentes foram recrutados (após Novembro de 1977).

Foi nessa sequência, no final dos anos 70 e ao longo dos anos 80, que fui assistente de Pitta e Cunha na lecionação de várias disciplinas. Nesse período, dependendo das cadeiras, fui também assistente de Soares Martinez e Sousa Franco. Considerando a falta de doutorados que, nessa altura, prevalecia, esses três professores, infelizmente já falecidos, confiaram-me a regência das cadeiras do grupo das ciências jurídico-económicas que me atribuíram. Registo com gratidão a confiança e a tolerância que tiveram comigo.

7Já nos anos 90, a advocacia – sem dúvida, a grande paixão profissional da minha vida – “roubou-me” à Faculdade de que eu tanto gostava (e gosto) e deixei de ter contactos regulares com Pitta e Cunha.

Mas o destino fez ainda cruzar-nos no princípio deste século, quando eu, como Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de um governo de António Guterres (sendo ministro Pina Moura) e coordenador da ECORFI (Estrutura de Coordenação da Reforma Fiscal), me empenhei na reforma fiscal de 2000/2001, que atravessou a maior parte das áreas da fiscalidade.

A reforma teve um grande impacto, foi objeto de elogios e críticas, entre elas, as que foram dirigidas, sempre com elevação, por Pitta e Cunha e Sousa Franco, que considerei (e considero) meus mestres.

A crítica mais contundente veio de Pitta e Cunha. Ele receava que a adoção crescente de presunções e o recurso a instrumentos de avaliação indireta pusessem em causa o princípio da tributação do rendimento real, que deve nortear um sistema fiscal justo e eficiente.

8Pitta e Cunha foi um professor excecional. Nas suas aulas, a exposição oral atingia um brilhantismo inigualável. A clareza da síntese, aliada a um estilo oratório cativante, era inultrapassável. Essas qualidades refletiram-se igualmente na sua extensa obra publicada.

Como cidadão, era um democrata, com preocupações sociais. Nunca conversei com ele sobre o dia a dia da política portuguesa e nem sei se teve militância partidária. Mas sempre o vi com um pensamento situado na linha do que, em Portugal, era assumido, por exemplo, por Sá Carneiro. Na política internacional, seguindo com muita atenção o que se passava nos EUA, Pitta e Cunha poderia ter sido um adepto das alas moderadas do partido republicano ou do partido democrata. Claro que não o estou a ver simpatizante das ideias mais radicais de Bernie Sanders, mas estou seguro de que não se reveria no “trumpismo”, quanto mais não fosse porque o seu bom gosto nunca aceitaria tamanha vulgaridade.

Outra faceta inesquecível era a elegância de Pitta e Cunha no trato, fossem professores, alunos ou funcionários. Respeitava os outros, compreendia-os e era incapaz de exibir qualquer agressividade, petulância ou descortesia. Era um príncipe na universidade.