O filme de 1983 The Big Chill, desde sempre traduzido para português como Os Amigos de Alex, abre com o funeral deste último, motivo inesperado para a reunião do seu grupo de amigos de juventude entretanto separados pelas circunstâncias da vida. Ainda na sequência de abertura do filme, numa cena entretanto eternizada como o perfeito exemplo de um nostálgico ritual de amadurecimento — no caso de toda uma geração norte-americana, a dos Baby Boomers — à saída da igreja e rumo ao cemitério, o órgão, pelas mãos de uma amiga de Alex, começa a tocar You Can’t Always Get What You Want, dos Rolling Stones, o épico que 14 anos antes, em 1969, marcara o fim da farra dos anos 60.

No refrão, conjugando na banda sonora a nota de amadurecimento geracional que percorre todo o enredo do filme, após a primeira frase que titula a música e com a força do coro gospel perfeitamente condizente com o cenário solene do rito, segue-se uma importante lição de vida: but if you try sometimes you’ll just might find you get what you need. Ou seja, nem sempre temos aquilo que queremos, é verdade, mas se alguma vez tentarmos, ou arriscarmos, de caminho acabamos descobrindo aquilo de que realmente precisávamos. Não foi, portanto, à toa que tanto a música como o filme ganharam uma conotação de culto nostálgico, típico do género “coming of age”, aqui na versão já trintona. Muito pelo contrário, todo o enredo, tal como a música de abertura, é arquetípico, transversal, algo com o qual a maior parte das pessoas se conseguiram identificar nas diversas pequenas sub-histórias que compõem o meta-enredo do filme: que há uma fundamental discrepância entre a perfeição dos sonhos de juventude e a nudeza crua e dura do mundo real que apenas a idade através da aprendizagem, maturidade e experiência acaba por vir revelar.

A lição é importante, porventura fundamental, mas nem sempre aprendida. Aliás, o perfeccionismo sonhador, aquele próprio da infância que anseia pela solução perfeita para cada problema, é ainda uma característica da nossa sociedade contemporânea, em particular a portuguesa, que irrompe pela infância, explode na adolescência e, para mal dos nossos pecados, vai persistindo já na vida adulta, sempre encarnando uma espécie de fantasia rom-com, quer seja esta consubstanciada numa incessante busca na carreira — pelo emprego de “sonho” —, na vida amorosa — pela “alma gémea” —, ou, de uma forma mais abstracta e geral, pelo conceito da “felicidade” que nos promete, lá no futuro, sempre após a próxima esquina, vir resgatar da agrura da nossa condição existencial.

Esta busca constante pela perfeição, uma espécie de estado harmónico, final,  último, acabado, onde todas as peças do puzzle finalmente se encaixaram de forma correcta, seja ela destilada na profissão, na carteira ou na família, revela a infantilidade da crença de que, primeiro, de algum modo está disponível ao ser humano a decisão, e o controlo, a priori, ainda imberbe, sobre aquilo em que deverá consistir a sua vida, tal como, depois, o “merecimento” — quanto mais cedo melhor — de um final cor-de-rosa, pleno de felicidade, paz e justa harmonia. Invariavelmente, tal como os enredos das rom-com, a história não varia muito, assentando de modo mais ou menos elaborado nas diversas formas como a vida virá trazer “felicidade” abundante, outro nome para o ideal utópico de que é possível, seja na polis, seja na vida privada, ver as necessidades, anseios e vontades todas simultaneamente satisfeitas. Daí, o namorado ou a namorada são perfeitos quando não chateiam nem têm grandes vontades próprias, os empregos são de sonho quando se ganha bem e se faz pouco — normalmente apenas possível no estado pela nomeação do ministro — e a felicidade é “autêntica” quando inclui a viagem ao destino da moda e as respetivas fotografias para os “amigos” invejarem nas redes sociais — já quanto ao resto, para sonhos mais rudimentares, joga-se na Raspadinha e no Euromilhões.

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Naturalmente, a cada tropeço na realidade — o namorado afinal tem personalidade própria, o patrão exige demais e os preços de avião sobem com as taxas do carbono que salvarão o planeta — as virtudes da felicidade material tratam rapidamente de se esfumar. Ora, como a felicidade, e o destino, são, ou pelo menos deveriam ser, perfeitos, cósmicos mesmo, “alinhados com o Universo”, à primeira dificuldade logo se trata de mandar fora a peça do puzzle que não encaixa, seja essa o namorado ou o emprego, enquanto se assume que, infelizmente, ainda não é desta que “se é feliz”. E assim sucessivamente, de divórcio em divórcio, de emprego em emprego, de proto-felicidade em proto-felicidade, num carrossel de perpétua repetição, revive-se o enredo de eterna busca pelo paraíso extemporaneamente prometido enquanto se comisera pela tragédia que configura cada “falhanço”.

Naturalmente, o carrossel não anda sozinho, é preciso dar-se ao pedal. Lá atrás, esgotando energias e cansando ilusões, razão última para que a “felicidade” tarde em aparecer, está a infantilidade própria do espírito da nossa época que se prolonga na ilusão de que é possível, ou sequer desejável, viver-se num outro mundo, uma espécie de realidade alternativa à humana, pleno de necessidades satisfeitas, desejos saciados e escolhas meramente hedonistas onde é sempre possível ter-se o sol na eira a bronzear-nos a pele ao mesmo tempo que chove copiosamente na horta para crescerem as bagas de goji. Isto, até que, à força da desilusão persistente e do desencanto, quando o brilho dos brinquedos tecnológicos e a abastança dos tempos ultra-materialistas já não chegam para preencher o vazio de vidas sem qualquer significado, quando o amadurecimento normalmente alicerçado no sofrimento natural da vida nos vai cansando de dar aos pedais do carrossel, em crise, finalmente, permitimos ao mundo adulto irromper pelo nosso pequeno castelo com a força que o caos, o risco e o desconhecimento da realidade sempre implicam. Afinal, a vida não estava resolvida, menos ainda controlada.

Aí também se revela a verdadeira base do anseio perfeccionista: o medo do desconhecido e a ânsia do controlo das nossas próprias vidas num mundo necessariamente muito maior que a nossa capacidade de o manipular. Ao invés, no pequeno mundo de ilusões infantis é o sonho de perfeita felicidade, uma utopia pessoal futura, que nos garante que as agruras do aqui e agora valem sempre a pena e, mais importante, que a vida humana, e a nossa em particular, faz sentido. Por que razão faz ela sentido? Porque mais tarde ou mais cedo “vai ficar tudo bem”.

Neste sentido, a rejeição do idealismo perfeccionista será uma libertação do adulto face aos devaneios da criança. Tal como Hayek explica que o criador de uma organização nunca pode idealizar um sistema perfeito que extravase a sua própria imaginação, também o perfeccionista preso no carrossel nunca poderá almejar ser mais do que a idealização limitada, infantil, do seu Eu infantil, ignorante e, pior, medroso na medida em que se resguarda na imaginação dos contos de fadas ao invés de enfrentar o mundo real. O perfeccionismo idealista impele necessariamente, portanto, não apenas ao centralismo obcecado com controlo e segurança como também impede o natural crescimento e amadurecimento, seja das pessoas, seja dos sistemas na forma como se adaptam à realidade.

É, por essa razão, apenas através da rejeição do ideal que se pode abandonar as quimeras próprias do sonho e abrir uma porta para uma certa sabedoria que procure conjugar na acção humana, seja ela colectiva ou individual, duas forças, ou necessidades, perfeitamente antagónicas entre si, é certo, mas igualmente fundamentais: por um lado, a necessidade de constantemente aperfeiçoar, de sempre melhorar, de aprender e evoluir; do outro, a noção de que o resultado final desse processo será sempre incompleto, imperfeito, ou seja, em última instância, frustrado.

Uma obra que se quer perfeita será sempre inacabada, tal como uma obra que se acaba será necessariamente imperfeita, eis a limitação da realidade humana revelada, como sempre, para além dos limites da racionalidade num paradoxo que nos diz que o constante aperfeiçoamento apenas é possível com o abdicar da necessidade de constantemente aperfeiçoar. Do mesmo modo, assumir que a acção humana em última instância sairá sempre frustrada e que é precisamente da consciência dessa limitação que se retira a optimização dessa mesma acção humana será, imagina-se, para um robot apetrechado com inteligência artificial uma conclusão descartada como irracional. A singularidade, admitamos, só pode mesmo estar ainda muito longe.

Aliás, talvez a única conclusão “racional” que a vida humana poderia implicar, desde logo porque se sabe que acabará inevitavelmente na morte e na pequenez cósmica, seria precisamente a do niilismo e do imobilismo: se tudo acaba em irrelevância que diferença então faz fazer-se o quer que seja, incluindo viver? Naturalmente, o mundo infantil da rom-com não é capaz de dar resposta a este paradoxo existencial afundado num mar de irracionalidade, mas isso é apenas natural na medida em que aquilo que norteia a história humana, ao contrário das comédias românticas, não é, nem nunca foi, o “final feliz”.

Pelo contrário, toda a narrativa humana, e apenas a essa luz o paradoxo existencial poderá ser solucionado, é um grandioso épico, sim, é certo, mas de tragédia e não de estática e perfeita degustação de felicidade. O Homem nasce nu e desprotegido, com os dias contados, num mundo incerto, hostil e sem misericórdia. De onde vem, não consegue perceber para além da escuridão do tempo, tal como também ignora o que o futuro lhe reserva. Nos entretantos, enquanto vive, mesmo reconhecendo a sua irrelevância no grande esquema das coisas, trabalha, esfola-se, angustia-se, mata-se, crescendo e multiplicando-se, sem saber porquê, nem para quê. No final, tudo o que ama, tudo o que tem, tudo o que fez, larga para trás, incluindo si próprio, desaparecendo, tal como apareceu, envolto em mistério, rumo a um eterno segredo afundado no desconhecido.

Que final feliz alguma vez se poderia retirar daqui? Não, não é de felicidade nem de finais que trata a vida do Homem. Na realidade, preso por um lado, limitado pelo outro, numa existência sem sentido, é apenas no caminho, portanto defronte da tragédia, que o Homem pode encontrar o sentido da sua existência: numa vida que é árdua, difícil, dura, e que por essas razões não é para todos, porque apenas para a viver é preciso força, coragem e sofrimento.

Não é, portanto, da busca da “feliz perfeição” que, no final, como aquele puzzle que uma vez completo se arruma a um canto, se encontra um ilusório estado de exaltada e perpétua satisfação. Relações amorosas, por exemplo, são das coisas mais complexas e difíceis da vida humana, não são fáceis, não admirando portanto que no mundo que crê que a felicidade anda de mão dada com a facilidade a maioria dos casamentos termine em divórcio. Pelo contrário, nada que valha a pena é fácil e é precisamente quando reconhecemos a necessária dificuldade da vida, bem como que o mero acto de existir implica necessariamente um equilíbrio permanente — sem fio! — num arame por cima de um fosso mortal de infinita profundidade, apenas aí aprendemos a apreciar a verdadeira missão do Homem — a da superação da tragédia e da dificuldade.

Aos humanos, impreterivelmente, sobram sempre apenas duas possibilidades: ou se persiste nos sonhos de mundos e vidas ideais, perfeitas e à mão de semear  — uma quimera que os oportunistas, em particular os políticos, bem utilizam para proveito próprio — até que a realidade rebente com as ilusões revelando a real tragédia que sustenta a vida humana; ou então, que se retire satisfação da nossa condição, aceitando o real, enfrentando o trágico e desse esforço construir aquilo que, independentemente da sua natureza, seja um projecto arquitectónico, político ou pessoal, ao ser erigido por cima de todo o sofrimento, dor e glória que o Homem tem para oferecer contra a tragédia do mundo, não pode ser outra coisa que não uma obra de arte.

Essa obra de arte que é a vida humana, independentemente do mundo que nos tenha calhado em sorte, é, no entanto, esculpida única e exclusivamente por cada um de nós. Por isso mesmo, apenas abraçando e, como Sísifo, carregando esta suprema responsabilidade individual montanha acima se poderá obter a verdadeira liberdade — aquela de enfrentar a sempre espinhosa tragédia do mundo, como diriam os Xutos & Pontapés, à nossa maneira.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não refletem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.