Como se pode ler nas últimas publicações do Observador (esta e esta), este morticínio gigantesco, ocorrido há 87 anos, é um tema actual. Porém, é de lamentar que, apesar das suas dimensões, este crime continua ainda a ser desconhecido para muitos e, pior do que isso, continua a ser negado por muitos.
Hoje em dia temos livre acesso à informação sobre o tema, para que não tiremos conclusões erradas. Por exemplo, é possível visualizar os comentários do famoso historiador Norman Davis e testemunhos verídicos dos que sobreviveram a este genocídio, gravados num curto documentário “A História do Socialismo: O Genocídio na Ucrânia” de Edvins Snore, cineasta da Letónia.
Há um século atrás, os bolcheviques não conseguiriam garantir a sua vitória e manter o poder sem o controlo sobre a Ucrânia. Deste modo, os comunistas consolidaram as suas forças para destruir a República Popular da Ucrânia, o novo estado independente que surgiu em 1918, em resultado da Revolução Ucraniana de 1917 a 1921.
Assim, o território ucraniano foi incorporado na União Soviética como uma República Socialista Soviética, embora na Ucrânia houvesse uma forte resistência ao comunismo. Havia, sobretudo, uma elite erudita de ucranianos, orientada para a independência da sua Pátria, bem como camponeses economicamente autónomos com uma forte consciência nacional.
Considerando isso como uma ameaça eminente à União Soviética, Josef Estaline encetou por uma tática severa – a morte pela fome, a qual agrupava cidades e vilas ucranianas numa lista negra, privando-as de receber produtos manufaturados e comida. Além disso, os camponeses ucranianos eram proibidos de sair das suas próprias vilas para sobreviver.
Os grupos de ativistas, mandados pelas autoridades de Moscovo, chegavam às vilas ucranianas e confiscavam tudo o que fosse comestível, não apenas o trigo, mas também as batatas, beterrabas, abóbora, feijão, ervilhas, animais de quinta, etc.
O resultado foi uma catástrofe humana: mais de 7,5 milhões de ucranianos morreram de fome entre 1932 e 1933. Morreram porque a comida lhes foi tirada.
Apenas imaginem que, em junho de 1933, todos os dias morriam cerca de 35 mil pessoas. Morriam 1440 pessoas por hora, ou seja, 24 pessoas por minuto.
Aqueles que sobreviveram, conseguiram-no comendo relva e insetos, sapos e rãs, pele de sapatos e folhas. Houve incidentes de canibalismo que foram detetados pela polícia, os quais foram registados e reportados às autoridades de Moscovo, que nunca responderam.
Numa das cartas enviadas a Estaline lê-se: “enquanto nosso amigo, mentor e pai, quero descrever-vos a verdade que vivemos, não aquela que ledes publicada nos jornais (…) as pessoas comiam relva e até os seus próprios filhos (…) as pessoas morriam de fome, não porque não houvesse colheita, mas porque o estado a levou toda. Enquanto as pessoas morriam de fome, os cereais eram armazenados (…) e destilados para fazer álcool (…) as pessoas famintas que tentavam recolher comida na estação de comboios de Khorol eram abatidas como cães” …
Nos anos 1932-1933 o regime totalitário escondia o seu crime através da propaganda e mentira. Ao longo das décadas seguintes, o regime tentou não só esconder a verdade sobre o Holodomor na Ucrânia, mas também destruir para sempre a memória do mesmo. Não só era perigoso escrever sobre este tema na imprensa, em cartas aos líderes partidários ou a familiares no exterior, como ainda nos seus diários pessoais. Qualquer nota descuidada poderia significar a morte ou décadas passadas em campos de trabalho (Gulag). Porém, apesar de todos os perigos, havia pessoas que não podiam manter silêncio. Por exemplo, as fontes consulares documentaram o seu conhecimento do que se sucedia na Ucrânia naquela época.
Contudo, a liderança da URSS bloqueou qualquer informação sobre a situação real na Ucrânia, desorientando conscientemente a comunidade internacional. Face aos rumores internacionais, e para os contradizer, foram organizadas viagens pormenorizadamente programadas e direcionadas para mostrar aos estrangeiros “famosos” a riqueza e abundância, escondendo o que se passava na realidade.
Ao mesmo tempo, alguns estrangeiros que tinham visitado a Ucrânia rodeada pela “cortina de ferro” e envolvida na fome, divulgaram ao mundo a verdade sobre o crime de assassinato de milhões, como é o caso do jornalista britânico Gareth Jones, originário do País de Gales.
Alguns publicavam artigos na imprensa livre, outros descreviam as suas experiências quotidianas nos seus diários ou apenas faziam registos fotográficos do horror ocorrido na Ucrânia. Eles acreditavam que expor a verdade fosse importante para combater o horror que estava a matar milhões de pessoas. Graças aos seus esforços, conseguiu-se preservar informação sobre um dos mais horríveis crimes na história da humanidade – o Holodomor.
De acordo com os documentos dos arquivos do KGB, para os quais temos acesso hoje, a segunda metade do ano 1933 e o ano de 1934, ou seja, o primeiro ano após o Holodomor, foi a altura da execução da resolução secreta do Conselho de Comissários Populares da URSS, sob o nome “Reassentamento de 21 mil famílias de agricultores para a Ucrânia”, datada do dia 25 de outubro de 1933.
Tratava-se de famílias oriundas da Rússia e da Bielorrússia. Para o reassentamento destas famílias na Ucrânia, foram alocados 15 milhões de rublos (moeda da então URSS), 10 milhões dos quais foram considerados como assistência financeira, e 5 milhões foram emprestados a longo prazo.
Aquelas famílias que vieram para as aldeias no leste e sul da Ucrânia, onde a população tinha morrido da fome, gozavam benefícios consideráveis, por exemplo, estavam isentas de impostos agrícolas durante três anos e, durante um ano, tinham o direito não fornecer leite e carne para o estado.
Todas as famílias reassentadas receberam gratuitamente uma casa e quintal, cuja reparação devia ser feita por aqueles que sobreviveram ao Holodomor.
As famílias reassentadas receberam também uma vaca, caso não a tivessem, grão de trigo na quantidade suficiente para comer e para plantar uma colheita, bem como foi dado um cavalo a cada duas ou três famílias. As famílias reassentadas ficaram, portanto, em condições consideravelmente melhores àquelas dos sobreviventes do Holodomor.
Após ter sofrido a fome durante nove meses, e não recebendo nenhuma ajuda, as pessoas foram obrigadas a reparar as antigas casas das vítimas que pereceram no Holodomor para habitação das famílias reassentadas.
Outro facto relevante para o qual queria chamar a atenção é que, às pessoas reassentadas, foram dados livros, jornais e revistas em língua russa. Além disso, nas escolas abriram várias turmas de língua russa.
Tal política do regime soviético é um crime contra a humanidade de acordo com a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. De acordo com o Artigo 2 da referida Convenção, “entende-se por genocídio os actos abaixo indicados, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como: a) Assassinato de membros do grupo; b) Atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo; c) Submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial; d) Medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) Transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo”.
Foi o caso em 1932-1933, altura em que o regime soviético cometeu genocídio contra a nação ucraniana por meio da provocação de uma fome em massa. Raphael Lemkin, autor do conceito de “genocídio” e pai da Convenção acima mencionada, destacou “a destruição da nação ucraniana” como “um exemplo clássico do genocídio”. Em 1953, Raphael Lemkin apresentou o relatório “Genocídio Soviético na Ucrânia” perante uma audiência de 3000 pessoas, reunida no Manhattan Center, em Nova Iorque, para assinalar o 20º aniversário da Grande Fome de 1932-1933. “Isto não foi apenas um assassinato em massa. Trata-se de um genocídio, um extermínio não apenas de indivíduos, mas também de uma cultura e de uma nação”, disse Lemkin na época. O mesmo descreveu o Holodomor como “um exemplo clássico do genocídio soviético, da sua mais longa e mais ampla experiência de russificação – o extermínio da nação ucraniana”.
Para a Ucrânia, a questão da prevenção do crime de genocídio é de particular importância. Durante quase 60 anos, os ucranianos estavam proibidos de lembrar os seus parentes que morreram famintos durante o Holodomor. É por isso que o mundo está tão pouco ciente de um crime tão brutal e massivo. O Holodomor passou por quase todas as famílias ucranianas: algumas famílias ficaram pela metade, outras por um terço, e algumas não sobreviveram de todo. Durante décadas, os ucranianos tentaram esquecer o horror de 1933, tanto pela dor traumática, como pelo medo de pôr em risco os seus filhos, uma vez que quem falasse sobre o Holodomor era severamente castigado.
Em 2006, a Ucrânia prestou tributo aos milhões de vítimas e adotou uma lei que reconhece o Holodomor como genocídio e que integra medidas de restauração e preservação da memória nacional, incluindo o livre acesso de académicos e investigadores aos arquivos sobre o Holodomor.
Hoje, o Holodomor é reconhecido pelo mundo. Os primeiros países a reconhecer o genocídio do povo ucraniano foram a Estónia, o Canadá, a Argentina, os Estados Unidos, a Austrália, a Hungria, a Lituânia, a Geórgia, o Perú, a Espanha, entre outros.
Em 2019, aos países que reconheceram a nível parlamentar o Holodomor de 1932-1933 como genocídio contra o povo ucraniano, juntam-se os Estados Unidos, tendo o seu Senado aprovado a resolução correspondente a 4 de outubro. É de assinalar que, em março de 2017, a Assembleia da República Portuguesa também aprovou dois votos: um de condenação, “Reconhecimento do “Holodomor” – Grande Fome de 1932 e 1933, ocorrida na Ucrânia”, e outro de homenagem às vítimas da Grande Fome na Ucrânia, o que é um contributo muito importante para a preservação da memória desta horrível tragédia.Por fim, apela-se à memória e à sensibilização, pois a indiferença perante um crime contra a humanidade dá aso a que o mesmo se repita.