Nasci como Lucas e desde que tenho memória, havia algo em mim que estava desajustado. Não gostava do meu reflexo e este meu desagrado foi ficando cada vez mais evidente o que cada vez mais dificultava a minha integração junto dos outros. Se de início me achava culpado por um qualquer crime que ainda me não tinha sido revelado, as dificuldades crescentes levaram a que procurasse “refúgio” junto de outros com dificuldades idênticas às minhas. Esta é a minha história.
Eu era diferente. Já em criança, antes do tempo de escola, nunca amuava e estava sempre pronto para a brincadeira. Era cativante e não era difícil. Sempre que encontrava parceiros para o folguedo tinha longos minutos de felicidade em que eu, diligente, encontrava tudo o que me escondiam. Facilmente encontrava esses “tesouros”, não porque visse bem, sempre tive dificuldade na visão a cores e ao longe enxergo mal. Ao contrário, a falta de luz nunca me incomodou e de noite ou no lusco-fusco ninguém via melhor que eu. Nas brincadeiras do procura-e-traz-me-à-mão, nessas, ninguém me ganhava. Sempre tive um ouvido muito sensível e um olfato que não se deixava enganar.
Há cheiros de que gosto e outros que não suporto. Detesto cítricos, alho, cebola, mas adoro carne, queijo e o cheiro dos outros animais. Eu próprio tenho um cheiro característico que nunca me incomodou. Eu era o meu cheiro e o meu cheiro era eu. Não havia outro igual, mas por causa deste meu odor passei martírios na infância. Obrigavam-me a tomar banho, o que era uma mortificação. Por minha iniciativa nunca tomei um único banho. Acho que a água tira a personalidade. Porém não fiquem com a ideia de que não gostava de chapinhar na água, ou que me importava de andar à chuva. Se ir para o banho, era, e é, um tormento, quando nas férias ia com o pessoal para a praia, eu era o rei da brincadeira. Corria, saltava, pulava, atirava-me à água e, para espanto de todos eu que nunca tivera aulas de natação, era um nadador exímio. Nunca consegui nadar com um daqueles estilos tipo parafuso ou batráquio. Para mim, nadar foi sempre intuitivo. Posso não o fazer com estilo, mas na praia, nos jogos de bola, quando esta ia para longe, mar adentro para a zona de rebentação, nunca fiquei à espera que alguém a fosse buscar. Era uma criança diferente, mas era feliz, disso não tenham dúvida.
Os problemas começaram a surgir quando fui para a escola. Brincadeiras, jogos, para mim não tinham mistério e era dos melhores senão o melhor. O problema era aquilo a que chamam “o aproveitamento escolar”. Diziam que não tinha, que brincava em demasia e que nas matérias das aulas, nessas, estava no grupo dos piores. Não fazia de propósito, nem era que me considerasse menos dotado, mas aquelas matérias, francamente!!! Para que queria eu prestar atenção ao português, matemática ou às ciências? Era uma seca!!! E havia tanta coisa com que me entreter e brincar!
Ao meu lado sentava-se o Francisco, um menino que gostava de atirar objetos para que eu num golpe de habilidade os apanhasse no ar antes de caírem. Era muito bom nisso. Outras vezes, por malandrice, o Francisco atirava os objetos para longe e eu, inebriado pelo momento não resistia em os ir apanhar, o que recorrentemente me trouxe problemas. Quantas vezes não fiquei de castigo, ou impedido de ir ao receio por ser apanhado em flagrante delito. Uma vez, o Francisco atazanou-me de tal maneira que eu saltei por cima de duas carteiras, para em pleno voo, apanhar uma luva. Estava em pleno voo, quando a professora de Inglês, ouvindo o restolho, se virou apanhando-me naquele flagrante despropósito. Fez um escarcéu dos diabos, e a minha mãe foi chamada à escola para ouvir a Diretora descrever o meu aproveitamento, que mais tarde ao dar-me o sermão e castigo, se lhe referiu como tendo-lhe sido descrito de miserável. Sempre que lhe faziam queixa a minha mãe ficava incomodada, entristecia, ainda que por uma ou outra vez lhe tivesse notado um sorriso enquanto descreviam as diabruras do filho. Ela sabia que era diferente e não me queria mal por isso.
Os meus problemas na escola resultavam principalmente do rendimento que tinha. Era fraco, e não há palavras meigas para o descrever. Professores e família insistentemente diziam que aprender era importante. Só assim, aprendendo, e com mérito, poderia ter o sucesso e reconhecimento dos pares. Na época, todos se pautavam por essa meritocracia. Mas orientar a vida pelo mérito, isso sempre me intrigou. Valorizar o mérito? Que mérito? Porquê e para quê? Quem definiu o que é mérito e por que deve este ser uma condição sine qua non para a felicidade? Por que há uns quantos para quem o mérito é fácil, enquanto para outros ele está sistematicamente vedado? Quando comecei a questionar estas verdades deixei de as ver como um crime, mas como características num mundo onde todos são diferentes e na sua diferença devem ser aceites. Era como se tivesse acedido a uma revelação superior e a minha consciência tivesse evoluído de um nível de observação para um outro de compreensão dos factos. Sentia-me então, um “eleito”, alguém conhecedor de uma verdade mística.
À medida que fui crescendo e ao longo da adolescência, a minha consciência foi evoluindo, e com ela surgiam novos motivos de exclusão. Os “amigos” juntavam-se em grupo, saíam em grupo e em grupo ou aos pares iam tendo os primeiros “flirts”. E eu, não que não tivesse “apetites”, mas também nesse domínio me sentia diferente. Namorar era um factor de discriminação.
Uma vez, a Carla, uma rapariga que acho que tinha por mim mais do que simpatia, convidou-me para ir ao cinema. Não era que gostasse de estar horas a olhar para uma tela, até porque ao longe, como já disse, vejo mal. Mas mesmo que conseguisse ver a tela, raramente me sentia atraído pelo que se passava no ecrã. Não fossem alguns sons mais estridentes que de imediato me alertavam e aquele sacrifício era completamente insuportável. Não aguentava estar horas quieto e como não me interessava a película, muitas vezes enroscava-me no chão, à espera que a minha companhia, entediada do estado de hipnose, me dissesse, anda, vamos! Isso nunca acontecia, e ali tinha eu de me manter quedo durante horas.
Um belo dia descobri as pipocas. Havia pelo menos dois tipos, as doces e as salgadas. As doces eram as mais gostosas. Se me deixassem era capaz de passar horas a comer daquilo. E desde que descobri o prazer das pipocas, ir ao cinema podia ser muito divertido. O que mais gostava com as pipocas, que mal via logo ficava a babar, era arremessá-las ao ar e apanhá-las com a boca antes de caírem no chão. E a escuridão da sala não me atrapalhava. Atirava-as com destreza e com graciosidade apanhava-as para de imediato sentir aquele gostinho nas papilas. Por vezes falhava-me a mão e elas saíam disparadas duas ou três filas adiante. Mas isso não me derrotava e num impulso acrobático atirava-me no seu encalço. Acabava por me estatelar umas filas à frente com os ocupantes aos gritos de susto. Estão a ver o filme!
Mas a tarde em fui com a Carla ao cinema, estava envolta numa neblina de novidade e mistério. Quando nos encontrámos, perto da sua casa, logo vi que as coisas eram diferentes. Não era a Carla que conhecia, parecia mais velha. Os seus olhos verdes estavam marcados por tinta negra como se pertencesse a uma qualquer tribo em guerra. Os lábios, esses ainda vinham manchados de um vermelho carne, como se apressadamente tivesse interrompido a última refeição. Até a roupa era diferente. Vinha mais cintada, com curvas que nunca lhe tinha visto. O pacote ficava completo com umas pequenas “andas” que trazia em vez das habituais sapatilhas. A coisa era diferente, passava-se algo de misterioso!
O filme como de costume era entediante e como a Carla, que já conhecia os meus hábitos, não me deixou levar pipocas para sala, passei o tempo a olhar para as filas em redor. Não sei o que se passava na tela, não sei se já disse que ao longe vejo mal, mas sei, porque de ouvido sou mestre, que do ecrã vinham uns sons, uns gemidos, um arfar que deviam ser contagiosos pois ali por perto todos se punham nos mesmos propósitos. Arfavam, gemiam, por vezes davam pequenos gritinhos, mas pareciam estar a gostar. E a mim faltavam-me as pipocas para entrar na brincadeira!
A Carla assumiu um comportamento estranho. Primeiro chegou-se muito a mim e começou, o que na altura me pareceu, a apalpar-me como se tivesse à procura de algo. No meio daquela “rusga”, os seus odores começaram a ser inebriantes, demasiado inebriantes. E não me contive. Coloquei-me de gatas diante dela e abracei-lhe as pernas, e com gestos vigorosos comecei a roçar-me. Estava eu em êxtase quando de repente a Carla levantou-se, e num ímpeto, e sem dizer anda vamos, saiu desvairada sala fora meio aos tropeções. De todo aquelas “andas” não lhe facilitavam a determinação.
Durante muitas semanas não vi a Carla e quando mais tarde, ao cruzar-me com ela a tentei abordar, ignorou-me como se fosse um qualquer rafeiro. Foi a última vez que a vi e nunca mais fui ao cinema.
Com o tempo fui percebendo que não me sentia bem no meu corpo e isso incomodava-me. Tinha de fazer algo para mudar a minha imagem. Foi mais ou menos por essa altura que me falaram ser possível através do SNS fazer uma mudança de sexo. Se era possível mudar sexo, talvez fosse possível levar a cabo umas alterações que achava importantes. Queria eu na altura ter uma locomoção mais quadrúpede e um facies com a queixada mais proeminente e orelhas descaídas. Uma vez mostraram-me a transformação que Benício Del Toro teve no filme “O Lobisomem”. Fiquei fascinado, era isso que queria. Procurei em todo o lado por quem me pudesse ajudar nessa transformação. Bati a todas as portas, fui ao consultório de todos os nomes sonantes do mercado, mas ninguém me ajudou. A minha mãe, já idosa, compreendia a minha angústia e tentou sempre ajudar-me. Mas para aqueles que como eu e se identificam com animais, para os que sofrem de “teriantropia”, para esses, a medicina ainda não tinha resposta. O mais próximo que encontrei, foi o caso de um cidadão japonês, o Sr Toko-san cuja “fantasia” era vestir um “fato” que lhe desse a aparência de um Rough Collie e assim passear-se pelos parques públicos. Também aprecio a raça, mas o meu problema não se ficava pela aparência. Ao contrário dos “furries”, não desejo apenas ter um corpo coberto de exuberantes e vistosos pelos, eu queria mais.
Volvidos anos deste meu sonho, já não o vivo de forma tão obcecada. Agora que tenho idade para ser autónomo, aceito-me como sou, mas vejo que não é fácil garantir sustento e arranjar trabalho, ainda que haja sectores para os quais me sinto particularmente habilitado. Com revolta vejo empregos, na área da segurança, no mundo do espetáculo, e outros, serem ocupados por quem não tem tanta apetência para os mesmos como eu. Mas, não me posso queixar. No geral, as pessoas tratavam-me como um cão, ainda que isso nem sempre me agrade.
Por vezes vejo os “cis-humanos” no parque da cidade a passear os “cis-caninos”, sempre muito bem cuidados, alguns até com um agasalho vistoso e todos com um ar de importância, ar de quem sabe que têm um lar e um aconchego sonolento à espera. Falam-lhes sempre com ternura e com simpáticos diminutivos, o “inho” isto! o “inho” aquilo!, anda, venha!, o “bonequinho” quer uma bolachinha!, a “mamã” quando chegar a casa vai-lhe dar a papinha! E quando defecavam trazem sempre um saquinho para guardar o “produto”. Nunca percebi para que queriam aquilo!
Como me sentia invejoso daquelas mordomias. Era infeliz. E isso fez-me procurar refúgio noutros que como eu se sentiam desprotegidos na sociedade. De início os desajustados eram uma raridade, mas à medida que foram “acordando”, o seu número não mais parou de aumentar. E vi um pouco de tudo. Vi homens que não queriam ser homens, mulheres que não queriam ser mulheres, brancos que queriam ser negros, negros que queriam ser negros, gente que não sabia o queria ser.
Os mais inteligentes de todos eram os que se diziam “transgénero e binários”. Tinham possibilidades ilimitadas. Um dia eram uma coisa, outro, eram uma outra completamente diferente. Lembro-me do João, um assumido “transgénero binário”. Um dia assaltou uma bomba de gasolina e fugiu com o dinheiro da caixa. Quando mais tarde foi apanhado pela polícia disse que deveria haver um equívoco pois de momento aquele corpo estava ocupado pela Sara e que o João se tinha ausentado. A polícia, desconfiada, passou a vigiá-la de perto, mas ao que sei, o João nunca mais se assomou em público.
No grupo também havia outros “animalistas” como eu, gente que não era “cis-espécie”. Havia quem se visse leão, ou urso. Havia o Henrique cuja imagem interior era de “galinha” e passava por isso o cabo dos tormentos, e havia a Raquel. Com ela tinha sempre grandes desacatos. A Raquel era uma “trans-espécie” que se via como gata e isso mexia-me com os nervos. Mal ela surgia e logo ficava de pelo eriçado e desatava a ladrar-lhe em altos berros. Ninguém me conseguia segurar. Se a apanhava desfazia-a. Porquê? Às vezes perguntavam-me por que me atirava a ela daquela maneira. Nunca consegui responder, acho que era uma questão de honra, um karma.
Os “trans-espécie” que se viam como cães e gatos eram a maioria. Estavam mais organizados e isso permitia-lhes uma maior capacidade de reivindicação. O grupo dos “trans-gatos” era o mais activo. Lembro-me de terem lutado e conseguido que nas instalações sanitárias do ensino secundário da cidade se introduzissem caixas com areia aromatizada para todos os que se não reviam na habitual louça sanitária. Foi uma grande peleja, mas uma luta de sucesso.
Por vezes quando nos reuníamos, alguns mais politizados nas questões trans e com maior consciência destes temas, explicavam porque deveríamos “acordar”, assumir as diferenças e revindicar a equidade a que tínhamos direito. Aquelas sessões eram sempre muito esclarecedoras e quando delas saía sentia-me sempre iluminado.
Diziam os mais activistas do grupo que a sociedade tinha a obrigação de aceitar a diversidade, promover a inclusão de forma que o diferente passasse a normal e, que esta transição só poderia ser atingida através de uma diversidade inclusiva. Só com a exclusão do normal se atingiria a plenitude da igualdade. Eram palavras sábias que me enchiam de orgulho por ser um dos muitos da comunidade trans que iriam tomar o mundo nas mãos e torná-lo diverso, equitativo, tolerante e inclusivo.
Nas reuniões discutia-se o conceito de interseccionalidade, um termo que destacava a interconexão e interação de diferentes identidades sociais, como género, raça, classe social, orientação sexual, constitucionalidade, habilidade física, entre outras e de como essas categorias se sobrepunham à experiência na sociedade. Parece complicado? Ora bem, este é o novo “normal” “pós-colonial”, segundo o qual os males que o mundo padece resultam da acção do “supremacista” e “capitalista branco”. Características como: ser negro (a melhor das cores), mulher, obesa, pobre, vegetariana, animista, animalista, ambientalista, trans, e GINK (green inclination no kids), eram todas positivas. A cada uma destas características é-lhe reconhecida um crédito. Quantas mais características destas se possuir, melhor é o resultado e maior deve ser a aceitação do “sofredor”. E tudo funciona com créditos dessa grandeza. Para um qualquer cargo não interessa as habilitações. Um negro tem mais mérito que um asiático e por aí a fora. É possível que haja alguém com mais habilitações para um dado cargo, mas se as tem é porque lhe facultaram as condições para tal. Ser branco, masculino e hétero, são condicionantes de injustiça e opressão que mais tarde vão resultar na vantagem que erradamente é vista como mérito. É por isso que para os adeptos da interseccionalidade o mérito é algo negativo que deve ser substituído por um “ranking” de factores de exclusão. Nesta linha, os “acordados” exigem que os critérios que resultaram no mérito passem a ser tidos como condicionantes negativas e por isso de desvantagem. Não há genética, não há igualdade de tratamento, não há responsabilização pelas opções, tudo se resume a uma política de equidade que normaliza por baixo fazendo-o de molde que, quanto mais inferior for a origem, maior é a vantagem. Isto sim, isto é inclusão.
A par da interseccionalidade havia também a “teoria de género”. Genericamente, esta propunha a eliminação das diferenças entre sexos negando-se de forma explicita a biologia, que bem vistas as coisas, diziam, não ser uma ciência exata. A teoria de género é um conceito importante na comunidade trans, mas os mais cultos diziam que ela devia ser incluída numa “grande teoria de espécie” onde todos sem discriminação devem primeiro escolher a espécie com que se identificam e só depois o género. E entre outras justificações, assim deve ser porque para certas espécies como vermes, lesmas, estrelas do mar, etc, o género não é opção. As possibilidades que a duplicidade trans-trans, oferece são imensas. Teríamos cis ou trans espécie a que se acrescia cis ou trans género (quando aplicável – ver o caso das lesmas). A este vasto leque, acrescentar-se-ia ainda uma terceira opção, os não-binários, um grupo que recusa e se ofende com qualquer tipo de classificação de género, e os que têm uma “identidade flutuante”. Esta última é o nirvana da felicidade trans, um estado onde a diversidade entra em estase podendo cada “personalidade” fazer variar a sua identidade de espécie ou género conforme se vai vendo (um pouco como as lesmas para o género).
Porém também temos fundamentalistas dentro de portas. Gente que não reconhece a comunidade trans para espécie e acham que o conceito trans só deve ser aplicado ao género. Dizem estes vetustos que a situação de trans-espécie é uma doença e que a mesma tem uma designação na comunidade médica – “teriantropia”. Mas a isto respondem os mais vanguardistas que mesmo que fosse uma doença, estes “doentes”, tal como os neurodivergentes (entidade antigamente designada por doentes mentais), têm direito à diferença, uma diferença mais a contabilizar no conceito de interseccionalidade. As possibilidades que estes conceitos possibilitam são imensas. Havendo uma dissociação entre corpo e consciência, o corpo passa a ser encarado como um recipiente desligado da natureza da consciência que contem. Características físicas e caracteres sexuais são apenas expressões orgânicas que não determinam a natureza da consciência, sendo por isso possível haver trans-espécie e transgénero sem alterar a fisionomia, i.e., o involucro. Esta era a teoria em que o grupo fundamentava toda a sua linha de pensamento. Com este enquadramento percebe-se que neste mundo, para esta “realidade” não há nada mais ofensivo do que ser branco, heterossexual e masculino. Não há características mais agressivas do que estas. Porém, estas não são as únicas agressões e outras há que sob a aparência de minudências como perguntar a alguém o nome, o sexo, a idade, a nacionalidade, ou felicitar esse alguém por “um bom trabalho”, são na realidade microagressões linguísticas que não podem mais ser toleradas. Ora toda esta retórica era música para os meus ouvidos, ainda que na maior parte das vezes fosse mesmo isso, só música, pois os meus problemas do dia-a-dia, esses continuavam presentes.
Certo dia procurei apoio num partido político, o Pessoas, Animais e Natureza. Achava eu que um partido com um nome tão distinto poderia ajudar-me na minha inadaptação. Desloquei-me à sede para o apoio que almejava e à partida não posso dizer que tivesse sido mal recebido. Deram-me um pratinho de comida, fria e desenxabida. Acho que era vegan, fica o gesto. Deram-me inúmeros panfletos, disseram-me que tinham iniciativas para promover o bem-estar que iam desde casas de acolhimento com aquecimento central e fresquinho no verão, a um serviço nacional de saúde para animais, à proposta de criminalização do maltrato dos animais e o reconhecimento do nojo dos enlutados pela morte de um outro cis-espécie, tudo boas palavras. Mas para espanto meu, não vi nem nos dirigentes, nem entre os militantes que por ali circulavam nenhum trans-espécie. Diziam que protegiam a comunidade trans, mas não lhes atribuíam realmente nenhum cargo de relevo. Rapidamente deu para perceber a hipocrisia do grupo. Quando forem dirigidos por um qualquer trans-espécie, digamos, uma avestruz, ou tiverem um mulo (trans-espécie híbrido) a candidatar-se a um cargo político, então pode ser que lhes reconheça credibilidade.
Ainda não vos disse, mas ao fim de uma grande luta consegui mudar o nome e agora respondo por Lucão. Foi uma epopeia, mas esse relato fica uma próxima crónica. Por agora, ando na vagabundagem. Tratam-me como um cão, o que nem sempre acho um elogio. Quando me apanham nas lixeiras à procura de comida, correm comigo sem qualquer condescendência. Durmo onde calha e frequentemente confundem-me com um “sem abrigo” que sempre acabam por escorraçar. Enfim, p’raqui ando, discriminado, mas feliz à minha maneira.