Não é a primeira vez que declarações do Papa Francisco à imprensa causam sensação a nível mundial. Quem se lembra de algumas das conferências de imprensa nas suas viagens apostólicas, ou das suas controversas entrevistas ao diário laico La Repubblica, depois rectificadas ou desmentidas, não estranha o imbróglio que surgiu a propósito do documentário “Francesco”, de Evgeny Afineevsky, estreado no passado dia 21 de Outubro, no Festival de Cinema de Roma. Com efeito, a forma como foram apresentadas, nessa reportagem, algumas afirmações do Santo Padre, levou a crer que Francisco é a favor do reconhecimento civil das uniões entre pessoas do mesmo sexo.

Como no passado dia 2 de Novembro foi noticiado, a Secretaria de Estado do Vaticano enviou a todos os Núncios uma Nota “para entender algumas expressões do Papa no documental ‘Francesco’”. Esse comunicado esclarece o verdadeiro sentido das afirmações do Santo Padre: “Há mais de um ano, durante una entrevista, o Papa Francisco respondeu a duas diversas perguntas, em dois momentos diferentes, e que, no referido documentário, foram editadas e publicadas como se fossem uma só resposta, sem a devida contextualização, o que gerou confusão. O Santo Padre tinha feito, em primeiro lugar, uma referência pastoral à necessidade de que, no seio da família, o filho ou filha com orientação homossexual nunca sejam discriminados. Era a eles que se referia quando disse que ‘as pessoas homossexuais têm direito a viver na família; são filhos de Deus, têm direito a uma família. Ninguém pode ser expulso da sua família, nem se lhe pode fazer a vida impossível por esse motivo’.”

A Nota também esclarece o contexto em que o Papa Francisco se referiu à proteção legal às pessoas do mesmo sexo: “Outra pergunta da entrevista era sobre uma lei de há dez anos, na Argentina, sobre os ‘matrimónios igualitários de casais do mesmo sexo’ e a oposição do então Arcebispo de Buenos Aires [Jorge Mário Bergoglio] a essa lei. A este propósito, o Papa Francisco afirmou que ‘é uma incongruência falar de matrimónio homossexual’, acrescentando que, neste mesmo sentido, tinha falado do direito que estas pessoas têm a uma certa proteção legal: ‘o que temos de fazer é uma lei de convivência civil; têm direito a proteção legal. Eu defendi isso’”.

As palavras do Papa Francisco, proferidas no âmbito de uma entrevista informal, não são magistério pontifício, nem têm a pretensão de reformular a doutrina da Igreja, como recordou D. Héctor Aguer, Arcebispo emérito de La Plata, em artigo recentemente publicado em Infocatólica. Como é sabido, para que uma declaração seja, para os crentes, de fé católica, é necessário que o romano pontífice a proclame ex cathedra, ou seja, assumindo expressamente a suprema qualidade de Vigário de Cristo. Foi, portanto, despropositada a reação de quem quis ver, nessas afirmações, uma mudança de paradigma da Igreja católica e do seu magistério em relação à moral sexual.

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Foram, em geral, muito infelizes as várias tentativas de interpretação das palavras do Papa em relação à proteção legal das pessoas do mesmo sexo, mais do que da sua união. De um lado, os que a si mesmos se consideram os campeões da ortodoxia, esforçaram-se por encontrar nas palavras de Francisco irreconciliáveis contradições com a doutrina da Igreja. No extremo oposto, os antidogmáticos do costume dogmatizaram não o que o Bergoglio disse, mas aquilo que gostariam que tivesse dito, em uníssono com as agendas alternativas do politicamente correcto, a que querem submeter a Igreja.

Sosseguem os exaltados ânimos de ambos porque, afinal, o Papa Francisco não introduziu nenhuma mudança doutrinal. Por sinal, não foi a primeira vez que a montanha mediática pariu um rato. Também se disse que ia admitir as mulheres ao diaconado, sem que o tenha feito.  Igualmente se alvitrou que permitiria, na Igreja católica ocidental, a ordenação sacerdotal de homens casados, o que, sendo prática comum na Igreja católica oriental e, por isso, doutrinalmente possível, ao contrário do ‘sacerdócio feminino’, não aconteceu. Mesmo em relação aos ‘recasados’, embora tenha permitido que alguns, depois de prudentemente discernido o caso, possam ser admitidos à comunhão eucarística, também não alterou a doutrina da Igreja, pois já São João Paulo II tinha permitido a comunhão aos ‘recasados’, desde que vivam de forma coerente com a sua situação. Também agora, o Papa Francisco não contradisse o magistério eclesial.

Como no passado dia 2 se esclareceu pela Nota da Secretaria de Estado do Vaticano, Jorge Mário Bergoglio, tanto como Arcebispo de Buenos Aires como agora, enquanto Papa, nunca equiparou as uniões de pessoas do mesmo sexo ao casamento, mas admitiu que quem assim vive, e não tanto a relação propriamente dita, possa gozar da proteção legal a que todos, qualquer que seja a sua orientação sexual, têm direito.

É verdade que, nas Considerações sobre os projectos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais, de 3-6-2003, da Congregação para a Doutrina da Fé, se declarou que “não existe nenhum fundamento para equiparar ou estabelecer analogias, mesmo remotas, entre as uniões homossexuais e o plano de Deus sobre o matrimónio e a família” (nº4). Contudo, o documento, da autoria do Cardeal Joseph Ratzinger, então Prefeito dessa Congregação, e aprovado por São João Paulo II, expressamente reconhecia que, “Se não for possível revogar completamente uma lei desse género, o parlamentar católico, […] ‘poderia dar licitamente o seu apoio a propostas destinadas a limitar os danos de uma tal lei e diminuir os seus efeitos negativos no plano da cultura e da moralidade pública’, com a condição de ser ‘clara e por todos conhecida’ a sua ‘pessoal e absoluta oposição’ a tais leis, e que se evite o perigo de escândalo” (nº 10 ). Ou seja: se houver apenas duas hipóteses: a de reconhecer juridicamente essas uniões como casamentos, como aconteceu no nosso país; e a de as considerar como meras uniões civis, pode-se defender, em função do princípio do mal menor, esta segunda opção, na medida em que é a menos gravosa para o bem comum e para a moral pública.

Como recordou agora a Nota da Secretaria de Estado do Vaticano, foi nessa circunstância que o Cardeal Bergoglio, então Arcebispo de Buenos Aires, propôs à Conferência Episcopal Argentina que votasse a favor das uniões civis de pessoas do mesmo sexo, não porque fosse a favor dessas uniões, que são contrárias aos mais elementares princípios da moral cristã e natural, mas por entender que essa solução seria a menos má, preferível à sua equiparação ao casamento. No entanto, a proposta de Bergoglio foi chumbada pelo plenário dos bispos argentinos, que entendeu que essa aprovação, mesmo no contexto de um mal menor, poderia ser interpretada como uma legitimação moral dessas uniões.

Com o sensacionalismo que caracteriza boa parte da imprensa, o Público do passado dia 22 anunciava que “o Papa lançou ontem uma bomba”! A notícia peca por extemporânea: a ‘bomba’ já foi lançada há dois mil anos, por Jesus de Nazaré, que a todos – mulheres e homens, jovens e velhos, casados e solteiros, heterossexuais e homossexuais – chamou à conversão. Todos, sem excepção, devem viver a castidade segundo o seu próprio estado e condição, porque só “os puros de coração (…) verão a Deus” (Mt 5, 8).