Em 1971, quando ainda havia União Soviética, guerra do Vietname e Black Panthers, o presidente Nixon declarou a droga o inimigo público nº1 dos Estados Unidos. Pouco tempo depois, em 1973, para responder à ameaça, foi criada a DEA, Drug Enforcement Agency.

A ameaça corporizava-se, tomava forma, crescia em números. A produção, transporte e distribuição de droga tornava-se um negócio próspero para os cartéis colombianos – primeiro o de Medellin, depois o de Cali. Um nome despontava como a estrela desse sinistro universo: Pablo Escobar Gaviria.

Na década anterior, nos anos 60, a droga popularizara-se no mundo euro-americano como símbolo de contracultura: uma contracultura com reivindicações políticas, mas também sociais, raciais, geracionais, sexuais, espirituais. Ao explicar o seu célebre motto “Turn on, Tune in, Drop out” Timothy Leary definia o programa: as drogas eram uma porta, um interruptor, um gatilho, para níveis de consciência até aí inéditos, interditos; havia que romper as amarras, que entrar em sintonia com o universo e que exteriorizar “novas perspectivas internas”; havia que abandonar tudo o que era estático, imposto, vinculativo e descobrir a própria singularidade, num eterno compromisso para com “a mobilidade, a escolha e a mudança.”

Perante o eterno “sereis como deuses” da serpente, estava aberta a corrida ao fruto proibido, com a promessa de um acesso rápido e pleno ao paraíso. Da rejeição das opressivas baias do cristianismo oficial e do moralismo da família tradicional, partia-se em auto-descoberta entre vagos transcendentalismos orientalistas, aparentemente mais favoráveis à libertação de todas as amarras.

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Na cultura hippie, que teria o seu momento alto em Woodstock, banalizava-se entre os jovens das classes médias e altas o consumo de marijuana e LSD. Na América, a Califórnia e Nova Iorque, na Costa Leste, eram os lugares sagrados do novo movimento anti-guerra e pró-amor. Ronald Reagan, então governador da Califórnia, comentava a propósito de uma florida manifestação de estudantes que arrastavam cartazes com a palavra de ordem “Make love not war”: “Não me pareceram capazes de fazer nem uma coisa nem outra.”

O Inferno dos descobridores de paraísos

Mas as drogas tinham uma longa história na cultura ocidental: grandes poetas, grandes escritores, usaram-nas e confessaram o seu uso: T.S. Coleridge, o autor de Kubla Kahn, era um habitué e morreu cedo do abuso; Thomas de Quincey publicou Confessions of an English Opium Eater em 1821; Edgar Allan Poe fumava haxixe, tal como Baudelaire. Mais perto de nós, no século XX, Burroughs, o autor de Junckie, confessava-se consumidor de heroína e ópio e assumia-se como homossexual, num tempo em que não era costume; na Europa, Sartre tomava mescalina desde os vinte anos, descrevendo visões em que era perseguido por lagostas e caranguejos nos Champs Elysées.

Aldous Huxley, Tennessee Williams, Jack Kerouak, Phillip K. Dick, Stephen King, todos eram confessos consumidores de drogas várias como estímulo à escrita.

E havia o clássico, o álcool, usado e abusado milenarmente por comuns mortais e grandes criadores.

Charles Baudelaire, o poeta de Les Fleurs du mal, descreveu numa obra confessional, Les paradis artificiels, o inferno dos dependentes: “Quero provar que os descobridores de paraísos fazem o seu inferno, preparam-no, cavam-no com um sucesso cuja previsão talvez os atemorizasse.”

O conceito de “Paraíso artificial” – indissociável do Paraíso original cuja perda e reconquista inspirou muitos dos nossos maiores poetas e escritores, de Dante a Milton – é importante para se entenderem algumas das motivações e razões dos que para ali partem: a libertação da dor e das misérias da dura realidade, o acesso fácil e imediato a outros mundos “espirituais” e materiais, o gosto do risco, a atracção pelo abismo.

O resultado acaba por ser dependência, o vício, a escravidão, a construção do próprio inferno – próprio e alheio.

É uma coisa que, apesar do empenhamento dos governos, da repressão, da acção das igrejas, do voluntariado de tantos por todo o mundo, continua a ser uma praga colectiva, uma fonte de desgraça e de miséria para milhões – na Europa, nos Estados Unidos, em toda a parte –, uma porta para o crime, organizado ou desorganizado, de cartéis ou de consumidores.

Diz o Center for Desease Control and Prevention que em 2023 houve nos Estados Unidos 107.543 mortos por overdose, a maioria por ingestão de fentanil, uma droga com poderosos efeitos analgésicos. Mas nas Guianas, na Bolívia e na República Dominicana, a percentagem de mortes é ainda maior. Além de um certo laxismo na prescrição de opioides, o mercado ilegal e os laboratórios clandestinos são os principais responsáveis pela disseminação destas drogas mortais. E apesar da repressão, os mercados abastecedores – uma rede muito complexa de máfias de diversas origens étnicas e geográficas, por vezes com cumplicidades a nível estatal, como nos chamados narco-Estados – continuam a funcionar.

Já não estamos no tempo dos grandes escritores que aceleravam a produção e os estados criativos tomando opiáceos. Embora o consumo de drogas continue a estimular (e arruinar) “criadores”, músicos, artistas, estende-se a todas as classes profissionais e sociais. E os que não são multimilionários, além de se arruinarem humanamente, acabam também por se arruinarem financeiramente – e a ter de roubar para poderem continuar a viajar até aos “paraísos” de que se tornaram dependentes

Uma guerra feita de batalhas

A droga é como certas soluções políticas: pode ser aparentemente libertadora ou libertária mas acaba por criar cadeias mais fortes do que aquelas de que promete libertar-nos. É um paraíso que passa rapidamente a inferno; e um inferno que se multiplica, por mais repressiva ou por mais liberal que seja a política de controlo. Não falta, por isso, quem fale em “guerra perdida”.

Mas uma guerra é feita de batalhas. E, às vezes, ganham-se algumas. J.D. Vance, o candidato republicano à vice-presidência, contou uma dessas batalhas vencedoras no seu livro Hillbilly Elegy. A saga da sua família destruída pelo álcool e pelas drogas e depois resgatada é uma história de redenção.

E por cá? Diz um estudo de há um ano do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa que o consumo de substâncias psicoativas ilícitas em Portugal subiu mais de 60% desde 2001, embora esteja abaixo da média registada pelo conjunto dos países europeus. Em “compensação”, a ingestão de álcool per capita, mesmo não tendo sempre ou inevitavelmente a mesma gravidade e as mesmas consequências do que o consumo de outras drogas, é aqui a mais alta do mundo.

Temos de lutar contra este flagelo e ajudar os que o fazem, como o Vale de Acór, que cumpre agora 30 anos https://www.valedeacor.pt/.

A comunidade Vale de Acór é uma obra da responsabilidade do padre Pedro Quintela que conta com uma equipa de dezenas de profissionais e voluntários para acolher pessoas com problemas de dependência de drogas, álcool ou jogo.

Os programas da comunidade têm um mínimo de 15 meses de duração e visam a reinserção dos que os procuram na vida de todos os dias, na família e na profissão. Actualmente estão lá mais de cem pessoas. A luta contra a dependência é, como reconhecem todos os que ali trabalham, uma luta desigual; uma luta contra uma força por vezes avassaladora que cria laços de submissão poderosos.

Mas todos os que estão nesta guerra acham que vale mais acender uma candeia que maldizer a escuridão.