1 O Jesus dos filmes e dos postais, de cabelo comprido, risco ao meio e barba aparada, é uma fantasia, é uma mistificação! O Jesus hippie, “peace and love”, revolucionário, contra a lei e a tradição, propagandeado pela mídia, pela cultura contemporânea, e tão bem aceite dentro de alguns círculos católicos… é uma imaginativa e enganosa criação; nunca existiu! E é uma “versão” tão nefasta quanto o são, de sentido contrário, os radicalismos integristas e fundamentalistas, que vão proliferando quer no seio da Igreja Católica, quer no mundo Protestante. Este Jesus adocicado não é o Jesus das Escrituras, nem o Jesus histórico, nem o Jesus que se revelou aos Apóstolos; não é o Cristo dos Santos, dos Papas e Doutores da igreja, não é o Cristo do Catecismo da Igeja Católica.
Jesus é Filho de Deus e é, na verdade, a plenitude da bondade e do amor de Deus para com a Humanidade; Jesus, na verdade, desceu dos céus e fez-se homem, no meio dos homens e pelo Homem deu a vida; Jesus, na verdade, perdoa Pedro, perdoa o ladrão e a mulher adúltera, perdoa o Filho Pródigo… mas convida-os, a todos, todos, todos à Conversão; propõe-lhes um caminho, interpela-os a mudarem de vida!
Jesus, na verdade, comove-se e chora pelos, e com os homens, morre por eles… mas Jesus também nos diz: “Vai e não voltes a pecar”; “A porta é estreita”; “Quem não toma a sua cruz e não me segue, não é digno de mim; “Se alguém vos bater ofereçam a outra face”. Jesus também nos diz: “Amai os vossos inimigos e rezai por eles”; “Convertei-vos e acreditai”. Jesus até expulsou os vendilhões do Templo! Será que no meio destes, não estará também a nossa banca?
A mensagem de Jesus é, na verdade, uma mensagem de paz, de amor e misericórdia; mas não deixa de ser uma mensagem muito exigente, difícil, radical. Ela provocará, alerta-nos Jesus, a discórdia entre parentes e amigos próximos. Até mesmo, familiares perseguirão os seus familiares para criticar, minimizar, desvalorizar, relativizar a radicalidade da mensagem de Jesus que os mesmos defendem (quem já não viveu esta realidade no seio do grupo de amigos ou até mesmo da própria família? ).
Jesus não era um moderador de pluralismos, Jesus não andava à procura de consensos e unanimidades, a partir dos quais todos teríamos um denominador comum, todos estaríamos mais ou menos de acordo, todos teríamos as mesmas prioridades e pensaríamos mais ou menos da mesma maneira. Jesus não fez isso, Jesus encarnou na História, revelou-se, e disse-nos que o caminho era Ele próprio: “Eu sou o caminho, a Verdade e a Vida”, e não disse, eu sou um dos caminhos ou uma das verdades…
2 Jesus sempre deixou claro que não seria fácil segui-lo. E por tudo isto, “muitos dos seus discípulos tornaram para trás, e já não andavam com Ele”; e por tudo isto, muitos foram, e são actualmente, em nome do Evangelho, perseguidos e mortos; e por tudo isto, o mundo quer calar Deus e encerrá-lo em conventos, livros e museus, e limitá-lo ao espaço privado, escondido, puramente pessoal; e por tudo isto, muitos dos que são, ou se afirmam com valores cristãos, querem adaptá-lo, ajustá-lo, relativizá-lo e moldá-lo de acordo com as suas preferências e escolhas pessoais (naturalmente subjectivas)… para justificar o seu modo de vida, e a sua cosmovisão particular; e por tudo isto, muitos querem tudo isto… para assim, não ser necessário mudar de vida; para não ser, finalmente, necessário, uma verdadeira Conversão. No fundo, seria como se cada um tivesse uma espécie de Revelação pessoal e privada. Mas tudo isto é um Cristianismo sem Cristo, uma Espiritualidade sem Religião, uma Energia universal, cósmica, impessoal… mas sem Deus.
E por isso, ser cristão, não é ser um mero fã do Jesus dos postais; Jesus Cristo não é uma história do Walt Disney, não é uma ideia, uma ética, um símbolo; é muito mais do que isso! Jesus Cristo é uma pessoa real, que surgiu na História (padeceu sob Pôncio Pilatos), e que nos pediu para mudarmos de vida! Jesus Cristo não morreu de Covid, ou de uma queda de uns andaimes numa obra em Jerusalém… Não! Foi condenado à morte, torturado e crucificado, por ser o revelador do Pai, o revelador da Verdade!
Resistamos, por isso, a um certo cristianismo adocicado, de palavras bonitas, de gomas e almofadas, de sentimentalismos e emoções; lutemos contra uma certa espiritualidade ritualesca, compensatória e energética, pouco interiorizada; não caiamos na tentação do “faça você mesmo”, na qual eu é que escolho o “menu”: gosto disto, gosto daquilo, acredito nisto, daquilo não gosto, isto já quero, aquilo dispenso.
Resistamos, resistamos… à nossa dureza de coração; à nossa autonomia exacerbada; à nossa autossuficiência! Lutemos contra as nossas cegueiras, relutâncias, obstinações… contra as nossas teimosias intermináveis… reconhecâmo-las! Não caiamos na armadilha das ideologias, sempre parcelas incompletas e eternas caricaturas da realidade. Será que a banca dos nossos negócios, das nossas teimosias e contabilidades, da nossa psicologia.. não estará solidamente montada no meio dos vendilhões do Templo?
3 Somos cada vez mais um povo de recordações, lembranças e referências cristãs. Temos muitos Pedros, Josés, e muitas Marias; temos o Natal, temos os dias santos, e temos a Páscoa, que se aproxima…
Somos um país dos chamados católicos não praticantes, dos chamados “cristãos culturais”… ou, também podemos dizer que somos um país de praticantes “não católicos”; como se preferir! Mas o que significa isso na vida real e concreta das pessoas? Cada vez menos… pois, ter referências históricas, culturais, intelectuais, e temporárias-sazonais (gosto muito do Natal e de dar esmola no Banco Alimentar)… é diferente de ser-se um crente à procura de Deus na sua vida; é totalmente diferente! Veja-se a relação que temos com o dinheiro, com o tempo, com o amontoar dos haveres, posses, e recursos… veja-se a relação com os outros, com aqueles que não são do nosso círculo próximo; veja-se a relação com a justiça, com os mais pobres e desfavorecidos, com quem pensa de maneira diferente. Sim, a nossa conta bancária preocupa-nos muito; sim, é importante ter bons carros; boa carreira; prestígio e claro, o inegociável fim de semana e as irrecusáveis férias de sonho. Tudo isto é prioridade, urgente, uma exigência. Já que haja mais gente a conhecer o Evangelho, que a fé seja transmitida de forma sistemática, coerente, incansável; já que aquilo em que dizemos acreditar se traduza naquilo que rezamos e se concretize na nossa maneira de viver… bem, isso já não é algo que nos preocupe assim tanto, já não é algo que, com os nossos truques e justificações, com as nossas desculpas e murmurações, não acabará por se resolver.
Somos muito católicos, muito cristãos, muito solidários… mas queremos com grande determinação o sucesso exacerbado e uma vida muito enroscada nos esquemas deste mundo das coisas.
4 Não nos enganemos, não nos iludamos a nós próprios … não somos católicos porque temos valores católicos; não somos cristãos porque temos valores cristãos, mais ou menos abstratos, de ocasião e “à la carte”!
Deus deu-nos o dom de o ir conhecendo, ao ponto de enviar o seu próprio Filho, para que não houvesse “dúvidas”… para que a Revelação pudesse ser plena e inequívoca. Mas nós, o Homem, ignorámo-lo, perseguímo-lo e, finalmente, crucificámo-lo!
O que fazemos nós, pelo Cristianismo, no seio da nossa família, do nosso grupo de amigos, na escola, na universidade, no trabalho? O nosso testemunho é, frequentemente, tímido, envergonhado, medroso, pouco comprometido. (Consideramos que basta sermos tipos fixes, amigos dos animais, que damos esmola no banco alimentar, que separamos o lixo e atravessamos na passadeira; A! E que somos inclusivos).
Vivemos tempos difíceis! A nossa identidade como católicos desagrega-se, fragmenta-se e decompõe-se! A igreja vive a crise imparável da Secularização; as suas práticas mundanizam-se, banalizam-se e os seus ensinamentos deixaram de ser sal para serem açúcar, gomas e coca-cola. Em vez de ser a igreja a cristianizar o mundo é o mundo a mundanizar a igreja. Jesus é cada vez mais encarado, apenas, como um bom exemplo, uma ideia, uma inspiração. A crise da Igreja Católica é assim uma crise de fé em Jesus Cristo vivo, actuante, sempre presente. A fé, dizem os santos, é um acto inaugurador e fundador da igreja. A igreja nasceu da fé; sem fé a igreja entra em crise. A fé é a sua essência, o seu ADN, é só ela que a mantém viva, e é só ela que a poderá revitalizar! Há quem continue a insistir que a Secularização é a solução da crise da igreja; mas não! A Secularização da igreja é a causa da crise, não é a solução da crise!
Há quem queira reduzir a igreja a uma mera construção humana, de boas vontades. Mas tal seria fazer da igreja mais um projecto humano, ao jeito das sociedades humanas… e não a Família Humana fundada por Deus e movida pelo Espírito Santo! A Secularização do mundo está a transformá-la numa instituição mundana, vulgar, corriqueira e a esvaziá-la da sua natureza intrinsecamente religiosa, sagrada, transcendente; ela corre o risco de perder a dimensão da graça… que só Deus pode dar! E sem esta dimensão sobrenatural… a Igreja Católica não passará de uma rica, poderosa, universal… mas de uma simples e mera ONG.
5 É o Cristo das Escrituras que tem de estar no centro de tudo, não é o Jesus dos postais! Claro que a Igreja Católica está no mundo e tem de responder ao “homem imanente”: o homem que tem fome de pão, de bens materiais… mas sobretudo ao “homem transcendente”: o homem profundo, que tem fome de vida eterna, de felicidade infinita, de sentido, de imortalidade, da espiritualidade, do sagrado, da esperança, da plenitude, da felicidade. E só Deus é resposta para tudo isto! Veja-se a vida dos Santos: quanto mais amavam Deus mais amavam o próximo, mais eram incondicionais na entrega da sua vida aos mais pobres e marginalizados… e porquê? Porque estavam agarrados ao Centro. Por isso, quando o Homem se fecha sobre si próprio torna-se numa criança egoísta, teimosa, eternamente insatisfeita; por isso, todas as utopias sem transcendência acabam na ditadura, no totalitarismo. Dizem-nos os sábios que um humanismo sem Deus… só leva, a prazo, ao “anti-humanismo”; veja-se o tempo presente que vivemos! Falta uma visão elevada, espiritual, para além do prático, do funcional, do material. E como é que se produz a Fé? A fé não se produz; a fé não é natural; ela é iniciativa de Deus, é obra do Espírito! É por isso que a fé não depende, sobretudo, de causas, de fazer muitas coisas, do activismo exacerbado… : ai a modernidade, ai o padre conservador, ai as beatas da paróquia, ai a doutrina, ai o vaticano… não! A qualquer momento qualquer pessoa pode iniciar um percurso de fé; basta abrir-se a Deus. Não depende do novo padre, do novo bispo, do novo Papa… não depende disso! A fé está sempre “acessível”! Não é preciso esperar que mude a teologia, a doutrina, que a igreja se modernize, que venha o sínodo, que mude o padre ou o bispo, que os padres se possam casar… para eu fazer parte da igreja. Depende de nós e, sobretudo, do nosso Sim ao convite permanente e incessante de Deus! Mas… cuidado com o Jesus dos postais!