Numa das conversas descritas no Velho Testamento, entre Deus e Jó, o primeiro faz uma observação acerca do monstro Leviatã. Deus refere que ninguém é ousado o suficiente para o provocar, quem resistiria a tal face a face? O ferro para ele é palha, o bronze um pau podre. O Leviatã é de facto um criatura mitológica temível, intocável. Admito que é irresistível fazer uma comparação da influência do temível Leviatã nos mares da antiguidade com o omnipotente António Costa no centro da política portuguesa. O atual Primeiro-Ministro já leva praticamente 7 anos no poder, em que herdou um país emergido dos horrores do resgate da Troika. Prometia uma política diferente de Pedro Passos Coelho, tido como arquiteto das políticas de austeridade, muitas dessas negociadas pelo governo anterior, precisamente do PS.
De facto, António Costa fez uma política diferente, devolveu muitos dos rendimentos na função pública, aproveitou um ambiente internacional bastante favorável à recuperação e assim conseguiu consolidar poder no partido (onde antes era contestado), na Assembleia, onde secou os parceiros à esquerda devido à inédita geringonça, e domou o PSD à direita, o seu principal adversário, um partido mergulhado num vazio de projeto e numa crise de identidade agravada pelos sucessivos sucessos de António Costa. Pelo meio conseguiu uma relação perfeitamente equilibrada com o Presidente da República, tentando não chocar muito um com o outro, aproveitando os altos indices de popularidade de ambos e assim o ambicionado sossego popular.
António Costa é o Leviatã da política portuguesa, porque neste momento ninguém é ousado o suficiente para o enfrentar. Quem se arriscaria a essa tarefa hercúlea? Não é nada fácil. Os sucessivos casos, alguns de absoluto escândalo, não parecem afetar o seu poder. O fracasso em resolver o eterno problema do crescimento económico em Portugal também não faz diferença. A deterioração dos serviços públicos (à cabeça a área da saúde) não são também razão para isso. Alguns podem referir que é a política assistencialista a razão para tamanho poder, mas talvez para encontrar a verdadeira razão seja necessária uma maior autocrítica.
Podemos encontrar uma incapacidade de resposta por parte da oposição, nomeadamente em demonstrar um projeto alternativo credível o suficiente para cativar os portugueses. Não existe de facto um projeto agregador dentro dos partidos de oposição e isso é sentido pela população, que vê António Costa como um mal menor, um gestor que já conhecemos e que permite uma mediocridade conhecida, que é sempre preferível e mais confortável em relação ao assustador desconhecido. Numa altura em que Portugal atravessa uma crise inflacionária, de aumento de juros e de habitação precária, existe um bombardeamento de casos sucessivos, fruto de uma máquina de tráfico de influências, como é o atual PS, que, tendo agora total poder sobre a coisa pública, transbordou esse mal para a máquina Estatal e as suas instituições e empresas. É um carrossel de nomeações, contratos duvidosos e total desrespeito pelo dinheiro dos contribuintes. Existe também possibilidade de crime, para além de todo o problema ético. Vários foram demitidos ou demitiram-se. Há no entanto um traço comum em todas estas variáveis, António Costa nunca é posto em causa. O chefe de Governo não sabe e, por isso, apenas pede satisfações aos seus subordinados. Por sua vez, os seus subordinados têm a responsabilidade de comunicar publicamente e assim arcar com as devidas consequências. Mas António Costa sabe e gere nas sombras. A diferença é que está demasiado no topo para dar quaisquer satisfações populares. É o pináculo do poder concentrado.
A receita de António Costa não é nova, e o PS já perdeu eleições no passado. O que é novo é a incapacidade da alternativa e é por isso que os dois principais partidos têm mais ou menos a mesma distância entre si há vários anos. Isso é uma novidade. Esta incapacidade faz com que o poder de António Costa se cristalize cada vez mais. Por isto, é cada vez mais uma possibilidade que António Costa fique mesmo como Primeiro-Ministro até ao fim do mandato ou saia pelo seu próprio pé, quando bem lhe apetecer. Existem várias consequências nisto, mas penso numa que é mais trágica que todas as outras, que é o desaproveitamento do dinheiro do PRR, que continua com uma baixa taxa de execução. Há uma real oportunidade de investimento em sectores de futuro e de reforma em algumas áreas em que Portugal está claramente atrás dos seus parceiros Europeus. Isto vai ter implicações futuras na questão do crescimento económico, que continua anémico, e na própria sustentabilidade da economia que continua altamente endividada e a entrar num inverno demográfico. Nada disto está a ser endereçado, e a receita que está agora a ser servida é a mesma dos últimos 20 anos. O Estado continua ineficiente e as nossas empresas com um problema de competitividade, advindo de um ambiente económico e fiscal difícil.
No final, não importa o abuso de poder, a impunidade e a desresponsabilização política quando queremos atingir António Costa, porque o Leviatã é temível demais para ser vencido por armas tão mundanas. António Costa tem vários escudos, que serão a sua proteção, desde Pedro Nuno Santos, Alexandra Reis, Miguel Alves, Marta Temido, entre tantos outros. O que importa, sim, é mostrar que existe vida para além de António Costa, e aí a responsabilidade está nos outros partidos da Assembleia. Talvez nessa altura, tenham alguma hipótese de o vencer e seguir outro caminho.