Uma estrela da extrema-esquerda espanhola, Iñigo Errejón, caiu em desgraça depois de ser acusado, por mais de uma dúzia de mulheres, de assédio sexual e maus-tratos. Ao ler os relatos das vítimas, o quadro é assustador: um psicopata que jogava psicologicamente com as mulheres e abusava do poder porque se comportava “como se fosse deus” (segundo uma vítima). Confrontado com as acusações, no momento da demissão endossou as culpas para o neoliberalismo.

Isto não soa a novo. Um sociólogo coimbrão, atrapalhado com as acusações de assédio sexual que despontaram pela voz de investigadoras do centro de investigação a que presidiu, invocou a vetusta idade como circunstância desculpabilizante. A responsabilidade deve ser transferida para um marialvismo enraizado que, segundo o Prof. Boaventura, é geracional. No caso de Boaventura, como no caso de Errejón, a culpa tenderia a morrer solteira.

Ou talvez não: no caso do Prof. Boaventura, o problema estará no irrecusável aproveitamento de mulheres, contrariando a temática extensivamente teorizada pelo eminente cientista: a denúncia da posição dominante do homem nas relações sociais (o patriarcado). O assédio seria algo de inato aos homens da sua geração, que não o seriam (homens a sério) se conseguissem resistir aos apelos carnais na presença de mulheres sensuais. Para não suportarem o estigma da masculinidade diminuída, teriam de ser potenciais D. Juan (ou D. Juan em potência). O problema do Prof. Boaventura é ter nascido quando nasceu e não conseguir domar a mãozinha marota e o falo irrequieto. Não por culpa sua, mas das convenções sociais intrínsecas ao tempo em que nasceu e se fez homem.

No caso de Errejón, a culpa não morre solteira porque torceu o braço à realidade com a proficiência de um mitómano compulsivo, vindo a público culpar o neoliberalismo pelo seu comportamento execrável com as mulheres. Errejón tem algumas gerações de desvantagem em relação ao Prof. Boaventura (metade da idade), o que o inibe de recorrer ao mesmo pretexto do teorizador da epistemologia do sul. Ocorreu-lhe o óbvio, atirando-se ao neoliberalismo. Talvez por ter passado toda a sua carreira política a combater o neoliberalismo.

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A fuga em frente e a demissão de responsabilidades são ações impróprias para quem andou tanto tempo a emitir atestados de conduta baseados na sua superioridade moral. Se acreditarmos na lengalenga de ambos, teremos de aceitar, com a condescendência que se impõe para salvar uma figura pré-deificada, que o Prof. Boaventura estava contaminado pelo vírus demoníaco do machismo e que, por mais que se tenha esforçado, não conseguiu combatê-lo. Daí à mãozinha marota na perninha da investigadora júnior e ao pénis furão, terá sido um passo. Sem culpa a imputar ao Prof. Boaventura, que tanto se autoflagelava por ter nascido na geração errada. Afinal, o machismo e o patriarcado estão-lhe tatuados na alma. Para mal dos seus pecados.

E teremos de acreditar que Errejón seduzia e maltratava mulheres porque estava possuído pelo gene do neoliberalismo, o que deve ser medonho para quem tanto se notabilizou no combate existencial do neoliberalismo. Imagine o(a) leitor(a) a angústia de quem quer descolar do neoliberalismo e constata que o vírus está tatuado nas profundezas da alma. Ou então, o Prof. Boaventura é um lídimo expoente do patriarcado, um marialva de antanho, e Errejón um neoliberal da pior extração. Assim caem as máscaras que escondem fingimentos.

Boaventura & Errejón são duas pobres almas atormentadas que não conseguem controlar os instintos e cedem ao ambiente, socialmente construído, em que são meros peões e não atores que o influenciam. E todas as mulheres que caíram nas armadilhas dos dois alegados abusadores deviam continuar caladas e perpetuar as delícias de Boaventura & Errejón – em nome das lutas que não se podem questionar. O contexto, há que não esquecer, explica tudo. Até reconhecermos a privação do livre arbítrio a que somos conduzidos pela retórica malsinada de ambos.

Já se sabia que o neoliberalismo tem as costas largas. No rescaldo do caso Errejón, apetece dizer “mas não tanto”.