É com algum espanto que continuamos a assistir, em Portugal, à propagação de opiniões sem o mínimo de conteúdo, em meios de comunicação nacionais. Sabemos bem que se abriu um espaço inusitado a todo o tipo de opiniões. E, se por um lado é benéfico que todos possam ter a sua voz, por outro lado traz para o espaço público convicções mal formadas, mais do que esclarecimentos. Esse é o caso do artigo que no passado dia 7 de Abril o Observador publicou. Nesse artigo Maria Helena Costa defendia, em traços gerais, que a internet promove a identidade transgénero (trans).

Ainda que reconhecendo o direito da autora professar as suas convicções, mesmo que infundadas, assim como a decisão editorial do Observador de as publicar, foram veiculadas imprecisões e erros que, do ponto de vista factual (técnico e científico), devem ser esclarecidos.

A anti-ciência: estabelecer factos gerais a partir de casos isolados

Selecionar casos isolados e, a partir deles, fundamentar posições (habitualmente confirmando o que já prévia e emocionalmente defendemos) é uma habilidade retórica de movimentos anti-progresso e/ou pseudocientíficos. Casos exemplares são os movimentos negacionistas e anti-vacinas.

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Os movimentos anti-trans utilizam as mesmas estratégias, fundamentando as suas posições contra as identidades trans a partir de casos singulares, normalmente autorrelatados e enviesados, sem o crivo do método científico, e sem qualquer atitude crítica da sua própria argumentação. Por exemplo, a autora apresenta-nos, com pinceladas vagas, o caso clínico de Helena Kerschner (sic), uma jovem adulta que, aos 18 anos, decidiu iniciar a toma de testosterona, tendo posteriormente decidido fazer a “des-transição”. E a partir deste caso, a autora fundamenta a sua posição sobre os perigos da internet e o rápido crescimento de identidades trans junto de crianças, adolescentes e jovens.

A autora poderia ter mencionado outros casos, mais sensacionalistas, e, ainda assim, não serviriam para fundamentar a sua asserção, como o célebre caso da jovem Keira Bell, de 23 anos, que se submeteu a procedimentos cirúrgicos irreversíveis, tendo depois concluído que não tinha uma identidade trans. Este caso (e a sua trama legal) não serve como fundamentação dos perigos da aceitação e afirmação das identidades trans, na medida em que é, quando muito, um caso de negligência dos profissionais da clínica Tavistock.

Se uma equipa médica falhar no diagnóstico diferencial e procedimento terapêutico num determinado caso clínico, nada podemos concluir sobre o diagnóstico nem sobre a terapêutica no geral, mas apenas sobre a proficiência dos profissionais que falharam.

A bandeira anti-trans: o fenómeno da “des-transição”

O ponto nevrálgico da argumentação dos movimentos anti-trans é o de que a aceitação das identidades trans são um incentivo (nunca fundamentando por que esse incentivo seria indesejável) à exploração da identidade de género dos menores e, em última análise, desencadeando uma cascata de eventos que empurrariam os jovens para realizarem procedimentos médicos irreversíveis. Na fundamentação desta posição está o fenómeno da “des-transição”, i.e., a cessação ou reversão da transição de género.

Em primeiro lugar, e ao contrário do pânico que os movimentos anti-trans pretendem rastilhar, o processo de transição médica fundamenta-se em evidência científica sobre os seus benefícios (e.g., redução da disforia de género e do sofrimento psicológico geral)1, assim como reconhece, não apenas as limitações do conhecimento sobre o impacto a longo-prazo de alguns procedimentos, como as particularidades que devem ser tidas em consideração no processo de avaliação e implementação terapêutica2. As diretivas da WPATH (World Professional Association for Transgender Health)3 têm uma secção dedicada à avaliação e tratamento de crianças e adolescentes com disforia de género, reconhecendo que:

  1. a diversidade de género na infância não se mantém, necessariamente, na idade adulta;
  2. a heterogeneidade da diversidade de género na infância é elevada, não significando que todas essas crianças desenvolverão disforia de género;
  3. o acompanhamento de crianças e adolescentes com disforia de género deve ser realizado por profissionais especializados, incluindo intervenções psicossociais;
  4. as intervenções hormonais não são necessariamente a resposta apropriada para todos os adolescentes;
  5. as intervenções médicas seguem um gradiente de (ir)reversibilidade:
  6. a) totalmente reversíveis (bloqueadores de puberdade),
  7. b) parcialmente reversíveis (terapia hormonal),
  8. c) e irreversíveis (procedimentos cirúrgicos),

e a sua implementação deve seguir critérios médicos e psicossociais rigorosos e de ponderação custo-benefício.

Em segundo lugar, se considerarmos:

  1. que nem todas as crianças e adolescentes que apresentam um género diverso desenvolvem no futuro uma identidade trans (como reconhecido pela WPATH),
  2. que são menos de 5% os adolescentes que interrompem a terapia hormonal previamente iniciada (i.e., desistem do processo de transição)4,5,
  3. e que dos 13% de pessoas com uma história de “des-transição”, mais de 80% reportam que fatores externos (e.g., pressão familiar, médica, religiosa) estiveram na origem do seu desejo de “des-transitar”6,

podemos concluir, não apenas que a avaliação e intervenção junto de crianças e jovens trans é rigorosa, como, também, que o problema não é a pressão social para se ser trans, mas sim para não o ser.

A internet e a alegada promoção da identidade trans

Não é nova a relação entre o anti-progresso social e o neoludismo. Ao longo da história, foram várias as tentativas de movimentos reacionários associarem as tecnologias emergentes ao aparecimento de fenómenos vistos como socialmente indesejáveis para uma parte da população. Por exemplo, lembramo-nos bem da homossexualidade no virar do século, vista como um fenómeno moderno resultante do contágio social. Recentemente temos assistido à implementação de medidas para banir as representações de diversidade sexual e de género dos curricula escolares como forma de aplacar o que se entende ser um incentivo à homossexualidade (deixando a nu, claro, que incentivá-lo seria indesejável unicamente porque consideram que a homossexualidade é ela própria indesejável). Ora, a proposição da autora é uma nova roupagem da mesma ideia de sempre, agora partindo da premissa falaciosa, recentemente veiculada em circuitos conservadores, da existência de um crescimento rápido de casos de disforia de género – uma ideia sem qualquer fundamento empírico para além de um solitário artigo com uma amostra de pais, cuja metodologia foi já contestada empírica e teoricamente7,8, e o fenómeno liminarmente refutado 9.

Diversidade de género: breve nota sobre “ideologia”

Talvez o aspeto mais desconcertante dos movimentos reacionários, e particularmente aqueles que lutam contra a aceitação da diversidade sexual e de género, seja a sua tendência para criar uma realidade sociocultural arbitrária, fundamentando-a numa ideia essencialista e ficcionada da natureza humana, excluindo e condenando qualquer manifestação da diversidade natural que fuja às suas balizas.

O que o movimento anti-trans parece ignorar é que a diversidade de género (seja ela conceptualizada como hoje, no ocidente, o fazemos, ou de outras formas mais ou menos específicas geográfica e historicamente, inclusivamente com fundamento religioso) existiu desde sempre na experiência humana. Tomboi da Sumatra Ocidental, muxes do sul do México, guevedoche da República Dominicana, hijra da India, two-spirit dos povos nativos do norte da América, mahu na Polinésia Francesa, mudoko dako no Uganda, ou chibados das culturas do Ndongo, são apenas alguns exemplos da ubiquidade transcultural da diversidade de género humana. É confrangedor que os movimentos reacionários anti-trans chamem de “ideologia” às manifestações da natureza humana transversais à história da humanidade, enquanto exigem divisões culturalmente circunscritas (roupas, brinquedos, atividades de lazer) como se fossem factos biológicos.

Não há nada mais ideológico do que querer conformar num espartilho a diversidade humana com as poucas categorias que somos capazes de imaginar.

Referências:

1 Turban, J. L., King, D., Carswell, J. M., & Keuroghlian, A. S. (2020). Pubertal suppression for transgender youth and risk of suicidal ideation. Pediatrics, 145(2), e20191725. https://doi.org/10.1542/peds.2019-1725
2 Rew, L., Young, C. C., Monge, M., & Bogucka, R. (2021). Puberty blockers for transgender and gender diverse youth—a critical review of the literature. Child and Adolescent Mental Health, 26(1), 3-14.
3 Coleman, E., et al. (2012). Standards of care for the health of transexual, transgender, and gender-nonconforming people. In World Professional Association for Transgender Health (WPATH) (7th edn). World Professional Association for Transgender Health (WPATH). www.wpath.org
4 Brik, T., Vrouenraets, L., de Vries, M. C., & Hannema, S. E. (2020). Trajectories of adolescents treated with gonadotropin-releasing hormone analogues for gender dysphoria. Archives of Sexual Behavior, 49(7), 2611–2618. https://doi.org/10.1007/s10508-020-01660-8
5 Wiepjes, C. M., Nota, N. M., de Blok, C., Klaver, M., de Vries, A., Wensing-Kruger, S. A., de Jongh, R. T., Bouman, M. B., Steensma, T. D., Cohen-Kettenis, P., Gooren, L., Kreukels, B., & den Heijer, M. (2018). The Amsterdam Cohort of Gender Dysphoria Study (1972– 2015): Trends in prevalence, treatment, and regrets. e Journal of Sexual Medicine, 15(4), 582–590. https://doi. org/10.1016/j.jsxm.2018.01.016
6 Turban, J. L., Loo, S. S., Almazan, A. N., & Keuroghlian, A. S. (2021). Factors leading to “detransition” among transgender and gender diverse people in the United States: A mixed-methods analysis. LGBT health8(4), 273-280.
7 Short, C. S. (2019). Comment on “Outbreak: On Transgender Teens and Psychic Epidemics”. Psychological Perspectives62(2-3), 285-289.
8 Ashley, F. (2020). A critical commentary on ‘rapid-onset gender dysphoria’. The Sociological Review68(4), 779-799.
9 Bauer, G. R., Lawson, M. L., Metzger, D. L., & Trans Youth CAN! Research Team. (2021). Do Clinical Data from Transgender Adolescents Support the Phenomenon of “Rapid Onset Gender Dysphoria”?. The Journal of pediatrics.