Gosto muito de ser um pastor evangélico porque estou mais livre para assumir a pessoa ridícula que sou. Por vezes sinto-me sozinho mas logo me acompanha um ou outro doido, mais ou menos varrido, sem noção do tal ridículo que parece repugnar a generalidade dos cidadãos. A fé cristã acaba por ser um destino certo para todos os que vão perdendo a vergonha. Já ouvi algumas vezes a expressão de que a Igreja deve ser um hospital para pecadores, mas considero-a tímida: a Igreja deve ser e é mesmo um hospício. Nele caibo eu, neste caso como pastor, mas cabe também todo um rebanho escandalosamente diverso.

Depois de vinte anos de trabalhar em igrejas, sei que um pastor tem de responder a certas qualificações. Creio que uma das mais importantes é aceitar o mencionado ridículo como condição de partida e de chegada para que seja competente no que dele se espera. E, nesse sentido, posso dizer com paz de espírito que a minha profissão de ser pastor evangélico é absolutamente indissociável do ridículo. Um pastor que não seja ridículo não pode ser pastor. Uma pessoa não-ridícula pode, na melhor das hipóteses, liderar-se a si mesma mas nunca servir de ajuda para terceiros. Espanta-me sempre que tanta confiança seja colocada em gente tão credível.

Está também a fazer vinte anos que casei. No dia em que fiz a promessa mais importante da minha vida, de que seria fiel à Ana Rute, tinha zero de experiência em fidelidade matrimonial. A condição necessária para casar foi mostrar-me na hora H isento de qualquer autoridade no assunto ou conhecimento prévio. Essa é também uma das razões que nos leva a tão poucos casamentos hoje: as pessoas teimam em só fazer o que julgam já saber. Desde quando é que algo bem feito depende de uma presunção de sabedoria? Em duas décadas de casamento uma coisa sei: para estar casado só preciso de uma pessoa comigo (obrigado, mulher!).

Qualquer fidelidade para ser realmente fiel pressupõe absurdo. Nesse sentido, toda a fidelidade é uma revolta contra a sensatez. Logo, o casamento dos casamentos, que é o de Cristo e da Igreja, e que é aquele que um pastor também representa dando a sua vida pelo rebanho que a comunidade é, é o que pressupõe a mais gloriosa medida de absurdo. Ser fiel é tomar a parte pelo todo e, miraculosamente, isso não corresponder a um erro de cálculo, mas à conta mais certa que pode existir na vida. Ser fiel é assumir a nossa falha em corresponder a todos os outros além daqueles a que nos prometemos. A fidelidade é falhar a todos para não falhar a apenas um.

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E as coisas mais inesperadas nascem do ridículo e do absurdo. O caso da excelência, se pensarmos nela, confirma isto. Excelência também é o exagero de fazermos de uma pequena coisa tudo. A pessoa excelente tem, nesta medida, um sentido de proporcionalidade abençoadamente avariado. A devoção que colocamos numa tarefa acaba sempre por ser uma falta de amplitude. Se conseguíssemos a toda a hora ser atentos a tudo, perderíamos a oportunidade de ser excelentes. Ser excelente é comportar-se de acordo com a tempestade no copo de água, sentindo que neste momento tudo depende de apenas uma minúscula fracção da existência. A excelência é uma qualidade que vem de uma quase-cegueira total.

Inquieta-me, por isso, o excesso de confiança que colocamos nas mãos da sanidade. Se por aí formos, nunca ninguém arriscará confiar em mim e em muitos outros. O cristianismo propõe uma sociedade alternativa, em que os patetas podem ter uma palavra. Mais ainda: o cristianismo sugere que a palavra pode ter uns quantos patetas também. Essa é a minha vocação. Sou um crente casado e esta condição dupla pressupõe um ridículo imenso — nele as áreas são muito generosas e há sempre espaço para mais um. Que nos mostremos tão precocemente sábios em qualquer matéria e em qualquer momento é também o que me tranquiliza no trajecto de ser tonto.

Para a Ana Rute no seu aniversário