O número de mortos atribuídos a atrasos na ação do INEM é assustador. Junta-se à polémica mais antiga sobre o concurso dos helicópteros, e ao processo confuso de escolha, ou não escolha, dos dirigentes. Nesta espiral de más notícias parece que cada dia que passa mais difícil se torna a volta à normalidade. Para muitos esta situação parece totalmente incompreensível: trata-se da emergência médica!
Bismark disse um dia que “quanto menos as pessoas souberem como se fazem as salsichas e as leis, melhor dormirão à noite”. O mesmo se aplica à governação. E essa opacidade é necessária: um sistema que tornasse completamente transparente o processo de tomada de decisão, e onde a lealdade estivesse ausente, tornaria a governação impossível. Existe, contudo, uma hierarquia: o primeiro responsável é o dirigente máximo do instituto, e depois por aí acima, até ao ministro das finanças ou ao primeiro-ministro. Na verdade, todos são responsáveis. E por estranho que possa parecer, todos procuram fazer o melhor, do seu ponto de vista.
A situação do INEM tem enchido as páginas dos jornais. Vive com cerca de metade dos profissionais necessários. Vive também com uma parte dos veículos e helicópteros de que precisa. Mantém a porta aberta à custa de trabalho extraordinário. E falha muitas vezes.
É neste quadro de falta recorrente de recursos humanos e materiais que consigo compreender a dificuldade em negociar com estruturas sindicais, e muitas vezes de responder a jornalistas, mas não consigo compreender a incapacidade de diálogo com os dirigentes a todos os níveis. De certeza que fazem o impossível todos os dias, com um “exército” a que faltam “botas”, “armas” e “mantimentos”, massacrados pela incompreensão de muitos que vêm na administração pública apenas um “conjunto de malandros com privilégios”.
Cresce a pressão sobre o governo para a necessidade de aumentar os recursos do INEM, em pessoal e em meios. Esse reforço vai ser inevitável e, numa área crítica como a emergência médica, a margem de negociação com as finanças é muito grande. Situações idênticas passam-se em muitos outros departamentos do estado central e, perante os resultados que a ação sindical ou corporativa sobre o governo têm obtido, é de esperar que se continuem a multiplicar as reivindicações.
A arte de encontrar o equilíbrio entre os desejos e a realidade só é possível num quadro de grande realismo em que os governantes tenham a capacidade de ser sinceros e de expor as reais dificuldades ao país. E isso não é fácil.
Existe um aparente paradoxo entre o número total de funcionários públicos, que muitos consideram excessivo, apesar de estarmos longe de ser um dos piores da União Europeia, e as deficiências que se identificam sempre que olhamos para uma área específica: faltam médicos, faltam guardas prisionais, faltam operacionais no INEM, faltam professores, etc., etc.
A que se deve esta contradição? Ao excesso de obrigações originadas pelo envelhecimento da população? À extensão do estado social a áreas antes não cobertas? ao pessoal que tem sido acrescentado à administração local, para quem se tem transitado uma parte das obrigações antes exercidas, pior, pelo estado central, mas com menos recursos? ou ao excesso de administração pública direta em detrimento de processos de concessão ou privatização? Não tenho a pretensão de esboçar uma reforma da administração pública numa crónica escrita ao sabor da pena, nem tenho as capacidades necessárias, mas sei que alguma coisa tem de ser feita, em Portugal e na União Europeia.
E sei também que devemos sentir “um arrepio na espinha” de cada vez que alguém declara “agora até há dinheiro”, ou “o país está melhor que muitos outros” ou quando os responsáveis financeiros se gabam da existência de excedente orçamental. Por vezes para acentuar o à-vontade fala-se mesmo de “folga orçamental”. Há alguns dias enviaram-me um “meme” que dizia “não me ofereçam bolo nem me convidem para tomar café porque eu não tenho maturidade para dizer não”. O mesmo se passa com o excedente. Por favor, não batam mais nesta tecla, porque nós não temos maturidade coletiva suficiente para evitar gastá-lo, e de preferência em excesso. É penoso ouvir falar de dificuldades, de deficiências, de riscos, de prudência, mas é sempre pior quando um sonho se torna pesadelo.
Chamo a atenção para duas relações que me parecem importantes: todas as decisões que não correspondam a aumentos de custos têm de ser tomadas com celeridade, e isto aplica-se a nomeações, concursos, autorizações de todo o tipo. Todas as ações e indecisões que destroem o espírito de missão, tanto no setor público como no setor privado, criam situações irreversíveis: nunca seremos capazes de repor o “amor à camisola” uma vez abandonado. E esse abandono está a acontecer um pouco por todo o lado.
Tenhamos consciência de que muitas organizações importantes não têm os recursos à altura das suas obrigações, e que provavelmente esses meios nem sequer existem. Que a chamada ginástica orçamental é um desafio impossível em que, com um cobertor muito pequeno, se tenta tapar ao mesmo tempo a cabeça e os pés. Os orçamentos raramente cobrem as necessidades conhecidas à partida. As poupanças obtidas pelas cativações, as dificuldades de execução orçamental, ou a miríade de mecanismos kafkianos que o Ministério das Finanças tem de inventar para controlar a despesa, existem porque não há recursos para tudo o que queremos que o Estado faça. É por isso que o outro nome do “excedente” é “suborçamentação”.