Em 7 de Outubro de 2019, Vincent Bevins publicou em The Atlantic um artigo intitulado “Where Progressives Are Winning”. O texto começava por dizer que os progressistas estavam a assistir, preocupados, à subida da Direita por toda a Europa, com o rol de desgraças que uma “subida da Direita por toda a Europa” podia arrastar.
Por toda a Europa? Não. No extremo ocidental do Continente, Bevins descortinava, com algum alívio e satisfação, um pequeno país onde os progressistas resistiam ainda e sempre à nefasta onda invasora. Em Portugal, uma aparentemente desconjuntada engenhoca que dava pelo nome “hard-to-translate” de Geringonça, “which in Portuguese means an odd contraption that is very likely to fall apart”, estancava a tenebrosa marcha da Direita com um progressista “não passarão!”
Passados dois anos e dois meses, em Dezembro último, eis que a admirável engenhoca acabou mesmo por desfazer-se – e sem que a Direita passasse. Numa hubris ideológica de que talvez se tenham já arrependido, radicais de Esquerda, outrora novos mas agora já de meia-idade, e velhos comunistas chumbaram o orçamento que o governo de António Costa apresentou; e, em nome da “estabilidade” ou de uma “frente de esquerda” contra a “ameaça direitista”, o eleitorado sacrificou ao voto útil as (até então essenciais) partes acessórias do mecanismo.
Como qualquer leitor de Carl Schmitt e o comum dos mortais terá entendido, a Geringonça foi produto da rejeição do Inimigo Principal – no caso, o governo de Passos Coelho. Rejeição que juntou em aliança contra-natura os filhos de Estaline, os netos de Trotsky e o Partido Socialista mais americanófilo da Europa Ocidental. Era uma Frente Popular de rosto humano para resistir ao “regresso da Direita e da austeridade”.
Desfeita, em Dezembro, a Geringonça, e como “em democracia há sempre soluções”, a solução foi ir a votos. Em tempo de pandemia, houve, então, uma campanha eleitoral televisiva, com bastante criatividade e emotividade e debates copiosamente explicados às massas televidentes por isentos pivots, analistas e comentadores – não fosse dar-se caso de o povo não estar a perceber bem a mensagem. Seguiu-se uma modesta campanha aberta e, no Domingo, 30 de Janeiro, votou-se.
A divina vontade geral popular
Na Filosofia do Direito e do Estado, Cabral de Moncada atribui ao espírito religioso de Rousseau os contornos divinos ou mágicos do seu conceito de “vontade geral”, uma espécie de vontade de Deus, do Deus infalível, infinitamente sábio e poderoso, travestida em “vontade popular”. A vontade da maioria era ou passava a ser sagrada.
O corpo eleitoral, que entre nós são cerca de 9.300.000 cidadãos inscritos nos cadernos eleitorais (dos quais não votaram ou votaram nulo ou branco mais de 4.000.000) terá, assim, agido como uma grande criatura que, por razões mais profundas ou mais fúteis, mas sempre sábias, hierarquizou pelo voto os partidos que constituem o leque da oferta eleitoral da Terceira República.
E deu a vitória ao PS de António Costa, em que votaram, até agora (ainda sem os círculos da emigração), mais de 2.200.000 cidadãos, cerca de 42% do corpo eleitoral. Pelas regras constitucionais e leis eleitorais, o PS obteve a maioria absoluta, com 117 deputados; a seguir, com cerca de 28% dos votos (perto de 1.500.000 de eleitores), ficou o PSD, com 71 deputados. Quem tivesse visto as cada vez mais intrigantes e maleáveis sondagens nas duas semanas anteriores às eleições e feito apostas com base nelas, enganava-se e desgraçava-se. Num despique tipo sprint para a meta final, os dois competidores eram dados como praticamente empatados.
Dos votos úteis dos muitos cidadãos induzidos a votar útil pelo frenesi da corrida, foram mais úteis os que se concentraram no PS, para que “a direita não passasse” ou para que reinasse “a estabilidade”. Mas é de admitir que os partidos à direita do PSD também tenham sofrido com isso alguma erosão – apesar da oscilação do candidato social-democrata entre os apelos unilaterais a um hipotético Centrão e as ténues convocações de uma direita a que dizia nem sequer pertencer. Tanto que recusara à partida a receita AD que, apesar de tudo, resultara em Lisboa e que poderia ter impedido a vitória socialista e mudado a triste sorte dos democrata-cristãos.
A felicidade estável do Centrão
Repetindo o que já é um lugar-comum analítico, mais do que uma vitória do PS e da sua mais ou menos vaga ideologia sobre o PSD e a sua ainda mais vaga ideologia, a vitória de Domingo foi uma vitória de António Costa sobre Rui Rio. Num país em inexorável declínio político, económico e social mas avesso a ondas de desgraça ou de grandeza, os partidos do Centrão proporcionam a agradável promessa de que, com eles, as más notícias e a tragédia estarão adiadas, podendo a morna normalidade seguir em frente, mas em progressão lenta, para um mais ou menos longínquo abismo.
Portugal viveu toda a História do século XX em ciclo e contraciclo com a Europa: a violência esquerdista do primeiro quartel do século, com os assassinatos de D. Carlos e Sidónio Pais e a “balbúrdia sanguinolenta” dos Democráticos gerou e justificou a reacção da Ditadura Militar e do Estado Novo. Depois, a política de neutralidade na Segunda Guerra e a introdução autoritária dos brandos costumes, numa sociedade que, no século XIX e até aos anos trinta, fora de costumes mais bravos, moldou as classes altas, médias e baixas à veneração pacata da “autoridade”.
A Guerra de África dividiu a geração que foi chamada a fazê-la: a maioria fê-la por obrigação, uma minoria por convicção e outra minoria recusou-a. Destas duas minorias, nasceram as últimas gerações políticas ao modo amigo-inimigo. A Esquerda venceu em 1974-75 e a guerra e o Império acabaram atabalhoadamente. A reacção popular e o “Ocidente” contiveram os excessos da Esquerda no 25 de Novembro de 75 e, em 1976, deixámos para trás as grandezas e as tragédias da História e entrámos na normalidade das periferias obscuras.
O Partido Socialista e o Partido Social Democrata são as duas faces desta acalmia nacional. Depois dos anos de “exótico” autoritarismo, e da guerra por um Império em contraciclo com “o resto do mundo”, depois dos grandes medos da burguesia perante o excêntrico PREC e os seus românticos devaneios e excessos terceiro-mundistas, também em contraciclo com “o Ocidente”, o país acolheu-se à mediocridade pacífica do Centrão, equidistante de tentações autoritárias à direita e à esquerda. De Mário Soares e António Guterres a Francisco Sá Carneiro e Aníbal Cavaco Silva, as regras do jogo do rotativismo funcionaram e foram servindo para gerir e adormecer uma nação antiga, na periferia da História, satisfeita com os fundos europeus e contente por a deixarem sossegada.
O Centrão revisitado
É outra vez em contraciclo que aqui se reafirma um Centrão enviesado à esquerda. António Costa, mais do que o PS, foi o artista e o artífice da presente vitória. Conseguiu fazer esquecer os efeitos mais pesados do novo “mal português”, que se agravaram com a Geringonça, e fazer com que a “vontade geral” rousseauniana, ajudada pela fragmentação partidária e o método de Hondt, lhe desse uma maioria absoluta, reforçando a sua fatia do Centrão com os votos das esquerdas radicais assustadas com o “regresso do fascismo”, desta vez encabeçado pelo tenebroso Dr. Rui Rio.
A outra fracção do Centrão, o PSD, não parece que vá conseguir, à sua direita, a mesma marginalização da concorrência que, para já, o PS conseguiu à esquerda. Essa concorrência à direita está agora no Chega e na IL, que são novos e diferentes (não sabemos o que acontecerá ao CDS). O Chega tem princípios e características de nacionalismo popular e identitário; a IL tem por bandeira o liberalismo, com os vários produtos económicos, sociais, morais e de costumes viabilizados por leis permissivas de modo a que possam estar disponíveis no mercado, sem outras limitações que não o “caos criativo” da livre oferta e do livre consumo. O Chega aproxima-se das correntes europeias à direita e da Direita; a IL dos centristas liberais alemães.
Aqui, onde os progressistas ainda ganham
Aqui, onde os progressistas ainda ganham, com quatro anos de governo socialista pela frente – e o previsível reforço compensatório do “magistério de influência” das esquerdas radicais preteridas pelo voto na academia, na comunicação social, nos observatórios e nos sindicatos – a direita não-resignada não vai ter sossego. Mas, independentemente dos partidos e da sua sorte, vai ter tempo para pensar, fundamentar e estruturar alternativas próprias, inspiradas e revigoradas pelos “ventos da História” que agora sopram na Europa e no Ocidente.