Na continuação do primeiro artigo, o pós-estruturalismo já em operação significa, sobretudo, desordem internacional e navegação à vista. Não existem condições suficientemente seguras para antecipar o futuro e, a partir daí, projetar o presente em direção ao futuro. Dito de outro modo, o sistema em que vivemos é indeterminado e o número de incógnitas é superior ao número de equações. Na origem desta indeterminação está o impacto disruptivo das grandes transições, a forte turbulência nas interconexões do binómio espaço-tempo e, em consequência, a falta de previsibilidade, a descontinuidade e, mesmo, a colisão dos vários ciclos do tempo no que diz respeito ao trinómio do estruturalismo político convencional – a polity, a policy, a politics – que tem marcado há muito o nosso normativismo institucional feito de programação e planeamento de políticas públicas. Todos lembramos a lentidão da polity nos planos constitucional, legal e administrativo, a rapidez da politics nos planos da reação política, do lobbying e do protesto, e o tempo de intermediação variável da policy no que diz respeito aos estímulos e incentivos de política pública. Aqui chegados, há uma pergunta que faz todo o sentido, a saber, estamos ou não a fazer a renovação concetual, institucional e política que a policrise aconselha em ordem ao bom governo das sociedades complexas do século XXI?

Comecemos por alinhar os principais impactos das grandes transições, que os factos recentes não se cansam de nos relembrar:

  1. A globalização do risco e a explosão de externalidades negativas: aumentam as desigualdades sociais, os efeitos disruptivos na justiça intergeracional e o risco iminente de uma tragédia dos comuns em muitas partes do globo;
  2. A cultura da urgência e emergência e a descontinuação das políticas públicas: estão na origem de programas e projetos falhados e problemas graves de desenvolvimento eternamente adiados;
  3. A extraterritorialidade e a fuga de capitais: com origem nos agentes multinacionais da economia financeira internacional, com base nas tecnologias de informação e comunicação assistimos à desmaterialização dos fluxos financeiros que, no final, ridicularizam a justiça fiscal dos estados nacionais;
  4. O colapso das instituições multilaterais globais e das regras aplicáveis: assistimos ao fim do consenso de Washington que validou a hegemonia do mundo ocidental e, agora, ao regresso das áreas de influência com a ascensão da euro-ásia e do indo-pacifico; dito de outro modo, estamos em trânsito e a substituir a força da lei pela lei da força;
  5. A compressão espaço-tempo, mobilidade e nomadismo socioprofissional: as tecnologias de informação e comunicação convertem o espaço em tempo, as comunidades online eliminam a distância física e desmaterializam a prestação do serviço; a ubiquidade socioprofissional cresce no mercado de trabalho, a digitalização, a inteligência artificial e os ambientes simulados geram várias velocidades e criam uma outra geração de desigualdades sociais;
  6. Do estado líquido ao gasoso, as bolhas virtuais e a corrosão do carácter: o determinismo tecnológico conduz ao individualismo metodológico, os ambientes híbridos e simulados, as famílias virtuais e os avatares heterónimos podem levar-nos até ao transumanismo e o pós-humanismo, fica o aviso;
  7. Uma nova estrutura de custos de contexto e de oportunidade: os impactos das grandes transições e a assincronia dos seus efeitos internos e externos alteram substancialmente toda o complexo de vantagens comparativas e competitivas entre economias nacionais e regionais, assim como, todo o aparelho instrumental de medidas de políticas públicas e ajudas de estado, é todo o complexo burocrático do estado-administração que está posto em causa;
  8. A deceção da política, a incerteza cognitiva e a insegurança normativa: a falta de programação e planeamento faz baixar as expetativas, a retórica recorrente acerca da inovação inteligente faz crescer a suspeita sobre a certeza científica e o mesmo se diga acerca da segurança jurídica e normativa que os lobbies assistidos pelas grandes consultoras manobram a seu bel-prazer;
  9. O risco de colisão frontal do pós-estruturalismo é real: cada subsistema social tem o seu ritmo próprio de compressão do espaço-tempo e do espaço-território, existe, por isso, o risco iminente de colisão entre o tempo dos mercados globalizados, o tempo político das democracias, o tempo estratégico das empresas, o tempo psicológico dos indivíduos, ou seja, no final, a velocidade dos processos corrompe a política e é uma ameaça para as democracias.
  10. O capitalismo de vigilância, sensores e censores e o endurecimento dos regimes: se se confirmar o confronto geoestratégico e geopolítico entre o pós-estruturalismo do mundo ocidental, baseado numa economia da mitigação e adaptação aos grandes impactos, e o estruturalismo do mundo euroasiático baseado na ordem autocrática e burocrática e em áreas de influência, parece-me inevitável um endurecimento de todos os regimes políticos em confronto, com vista a acautelar interesses próprios e a mitigar os efeitos externos mais negativos.

Dito isto, é inevitável que toda esta instabilidade estrutural se repercuta no governo das sociedades complexas. Senão, vejamos:

Em primeiro lugar, vivemos em condições de certeza decrescente, reagimos mais do que agimos, a política assemelha-se a um simples reparador de avarias. As restrições impostas pela gestão da conjuntura e a cultura de urgência e emergência determinam o essencial do ritmo da governação.

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Em segundo lugar, aceitamos o determinismo tecnológico e o fascínio da velocidade, tal como são promovidos pela internet dos objetos (IOT), a realidade aumentada e virtual (RAV), a inteligência artificial (IA), a computação quântica (CQ). De acordo com o filósofo Paul Virilio, o desastre é iminente. À nossa frente, um imenso nevoeiro no que diz respeito à temporização do horizonte temporal.

Em terceiro lugar, a revisão recorrente e a descontinuação das políticas públicas, por factos excecionais, razões eleitorais e atos falhados da administração e dos atores principais, fazem parte da interação complexa entre os dois incumbentes principais e não podem ser simplificados pela teoria e a ação política.

Em quarto lugar, estamos perante uma teoria da prospetiva fraca, em primeiro lugar, porque fazemos sobretudo mitigação e adaptação, em segundo lugar, porque a prospetiva foi substituída pelas tendências e os prognósticos, que servem muitas vezes como instrumentos de justificação de opções já tomadas.

Em quinto lugar, a ação prospetiva é, em consequência, mais processual, procedimental e incremental em ordem a proteger a responsabilidade dos incumbentes principais face à previsão, à contingência e ao risco, ou seja, deixou de ser ideológica, programática e política e aceitou a trivialização e banalização do futuro.

Em sexto lugar, a complexidade está do lado do governo e das suas instituições, mas, também, do lado da sociedade e dos indivíduos, é essa interação complexa entre os dois incumbentes principais que necessita de ser devidamente abordada e equacionada através de uma responsabilidade coletiva partilhada. Ora, a teoria e a ação política, face à repolitização do futuro, precisam de reinventar a sua própria complexidade.

Notas Finais

A constelação triangular constituída pelos bens privados e o interesse corporativo, os bens comuns e o princípio cooperativo e pela diferenciação funcional e política dos subsistemas sociais autónomos, projeta diferentes versões de unidade e outros tantos jogos de linguagem. A coordenação destes interesses e a redução da sua dinâmica centrifuga é uma tarefa de grande fôlego. O problema é que o estado-administração cultivou, por um lado, uma desconfiança acerca da auto-organização dos sistemas sociais e da sua autorreferenciação e, por outro, as organizações não se protegem de si próprias e do seu corporativismo prejudicando assim os seus próprios interesses. Quando os atores não são capazes de autorreflexão e autolimitação política não estão em condições de atuar de maneira cooperativa e, muito menos, como instâncias de supervisão acreditadas.

Nas palavras de Daniel Innerarity, abordar a complexidade significa que “A política deve passar da hierarquia para a heterarquia, da autoridade direta para a conexão comunicativa, da posição central para a posição policêntrica, da heteronomia para a autonomia, da regulação unilateral para a implicação policontextual (Innerarity, 2005, p:184).

*Innerarity, D (2005), A transformação da política, Editora Teorema, Lisboa