Por estes dias, a guerra da informação e desinformação que já aí está — trolls, social bots, contas falsas, fake news, desinformação, ódio, tweets, memes, vídeos, fotomontagens, vírus mediáticos — leva-nos a pensar que a realidade tem várias camadas e que num contexto tão sobrecarregado de informação e hiperligações a realidade se parece com um campo de cebolas. Estamos perante camadas sucessivas de realidade, desde o mais elementar senso comum até ao mais refinado bom senso, da realidade material à realidade aumentada e virtual, do juízo politicamente correto até ao juízo mais dissimulado, do juízo parcial até à plurissignificação do universo hipertextual, da hipótese absurda até à descoberta acidental, da informação à desinformação, da insinuação até à mais requintada ironia, da verdade científica até à pós-verdade e ao negacionismo.

Nesta vertigem informativa há hoje cada vez menos evidências discursivas, mas duas são especialmente reveladoras nos tempos que correm: a primeira diz-nos que a realidade é cada vez mais paradoxal e em definitivo o que parece não é, a segunda diz-nos que nos abeiramos de um limiar perigoso, de uma iminente tragédia dos comuns, de que são exemplo as alterações climáticas, a saúde pública, a ameaça nuclear e a segurança coletiva. Aqui chegados, constatamos, afinal, que declinar os paradoxos da realidade hoje, significa, também, aumentar o campo de observação da realidade, multiplicar os ângulos e as perspetivas de olhar para um problema. Porém, talvez a maior limitação para abordar o problem-solving neste novo ambiente seja a descontextualização, nua e crua, que as bolhas de informação e as novas formas de inteligência carregam consigo e que, estou seguro, nos farão passar inúmeras provações.

O nosso mundo encolheu dramaticamente e colocou os bens comuns globais da humanidade ao alcance da irresponsabilidade e dos irresponsáveis. Porém, raramente a realidade se deixa apanhar e, agora, muito mais líquida, tornou-se mais escorregadia e furtiva, ou seja, mais inverdade e mais pós-verdade. Essa é, também, a razão para usarmos mais tacticismo defensivo e outras tantas máscaras quando representamos múltiplas personagens. Não admira, pois, que as sociedades abertas e cosmopolitas em que vivemos sejam, não obstante, atravessadas por cortinas sucessivas que as tornam pouco transparentes. Além disso, a velocidade é a nossa imagem de marca e cada velocidade representa uma realidade, ou seja, uma grelha de leitura da realidade. Vejamos, então, algumas das perspetivas ou ângulos de observação que fazem, hoje, a plurissignificação da realidade.

O primeiro ângulo de observação é aquele que nos é dado pelos nossos olhos, pelo seu imediatismo, se quisermos, uma pele fina para as primeiras visualizações, apenas isso, algures entre o senso comum e o bom senso.

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O segundo ângulo de observação é aquele que nos é dado pelos ambientes simulados, reais e virtuais. Aqui vamos encontrar os complexos ambientes inteligentes que são extensões da nossa própria inteligência, desde a realidade virtual e aumentada aos interfaces cérebro-computacionais, da inteligência dos objetos até à inteligência artificial. Estamos em trânsito para fora do nosso habitat biológico, para nos instalarmos em dispositivos tecnológicos transumanos e pós-humanos cuja configuração futura nem sequer imaginamos. É a metalinguagem normalizadora do algoritmo-mestre, mas são, também, os gémeos digitais que chegam.

O terceiro ângulo de observação é aquele que nos chega por via do protocolo e do procedimento científicos. Estamos na era dos dados e das multidões e obrigados a suspeitar para conhecer. Digamos que estamos a atualizar para o século XXI o princípio cartesiano da dúvida metódica ou sistemática. A evidência dos dados pode ser uma arma de destruição matemática, por essa razão não devemos confundir a correlação estatística com a explicação racional. Entre a descontextualização da evidência estatística e a plurissignificação da realidade, é aqui que nos encontramos hoje.

O quarto ângulo de observação é aquele que nos chega por via da internet dos objetos (IOT). Aqui, o espetáculo da realidade será verdadeiramente alucinante. Logo que chegar a rede 5G podemos imaginar o princípio da realidade a contas com a máxima conectividade dos objetos, quando estes, por via da IOT, começarem a ditar, também, a sua realidade. Quando todos comunicarem entre si, pessoas, objetos e inteligência artificial, através de uma internet totalmente acessível e distribuída, teremos atingido o paroxismo absoluto, uma verdadeira histeria coletiva de informação e comunicação.

O quinto ângulo de observação da realidade é aquele que nos chega por via da sociedade dos riscos globais, por via do risco sistémico e interdependente. É o reino onde crescem o risco moral, o passageiro clandestino e o caçador furtivo e, ainda, os danos colaterais significativos. Com alguma sorte talvez possamos obter a mitigação dos danos quase sempre através da socialização do prejuízo que o contribuinte pagará no tempo próprio. Aqui, vamos encontrar, também, os cisnes negros, as interações fortuitas e as descobertas acidentais. Para descodificar esta camada de realidade, estamos obrigados a desenvolver treino específico e capacidades especiais para entender e antecipar como se forjam e desenvolvem as interações fortuitas e as descobertas acidentais, pois elas dificilmente caberão no interior das nossas métricas conceptuais habituais.

No final, estamos permanentemente obrigados a lidar com a hermenêutica interpretativa, pois, doravante, as sociedades são compelidas a aprender constantemente. O campo das ciências sociais e humanas, em especial, composto de conceitos, categorias, tipologias, padrões, normas e procedimentos, precisará de rever o seu código de comunicação para lidar com as notícias falsas e o enviesamento do conhecimento, sob pena de ser um ator secundário que corre pelo lado de fora da realidade da cultura digital.

Nota Final

Em síntese, quase no limite da nossa saúde mental experimentamos uma vertigem permanente para separar o essencial do acessório e lutamos com grandes dificuldades para administrar a nossa economia da atenção. No final, constatamos que declinar a plurissignificação da realidade é um verdadeiro trabalho de Janus, pois estamos a aumentar o campo da realidade antropológica e a multiplicar os ângulos de observação do problema. A realidade é virtual, a virtualidade é real, e a inteligência deixou de ser meramente neurobiológica para se instalar em ambientes digitais que, no limite, podem ser transumanos ou mesmo pós-humanos. É a sociedade algorítmica e o ciberespaço que chegam e que nos transportam para lá das fronteiras convencionais até ao universo da extraterritorialidade, uma realidade multidimensional onde somos atores e personagens constantemente comprometidos numa vertigem representativa, utilizando inúmeras máscaras que usamos conforme as circunstâncias e as conveniências. Nessa cultura da representação e simulação, as atividades de composição são de tal modo extenuantes que nos deixam próximos da exaustão. No final estamos exaustos e no dia seguinte tudo recomeça de novo.