Esta quarta-feira passou na Rádio TSF, no programa “Olhe Que Não” um debate extremamente interessante, mas ao mesmo tempo, perigoso. De um lado tivemos o naturopata João Beles. Do outro o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães. Debatiam em pé de igualdade se as terapias alternativas são, de facto, terapias eficazes.
Apesar da boa prestação de ambas as partes, este formato de debate tende a “beneficiar o infrator”. Já assistimos a esse problema relativamente às alterações climáticas. Apesar do consenso científico estar bem estabelecido, este tipo de debate perpetua a dúvida.
Dá a ideia que não há consenso, quando há. As alterações climáticas de origem antropogénica são reais e as terapias alternativas são fantasias.
As terapias alternativas não são alternativa à medicina. E como complementares, poucos ou nenhuns benefícios apresentam, para lá dos dúbios aumentos de “qualidade de vida”. Sabemos que é exatamente o contrário. Quem recorre às terapias alternativas adia diagnósticos ou o início de tratamentos eficazes; abandonam terapêuticas que salvam vidas, como o caso da quimioterapia; e os pais que frequentam naturopatas e homeopatas têm tendência para não vacinar os filhos. Isto é perigoso para o doente e para a sociedade.
Ao contrário do que foi dito pelo naturopata João Beles num exercício de cherry-picking, típico dos defensores das terapias alternativas, os produtos promovidos por estas terapias raramente demonstraram eficácia e não estão livres de efeitos nocivos. E como o Bastonário corretamente apontou, são produtos mal regulados muitas vezes contaminados com metais pesados ou propositadamente “enriquecidos” com medicamentos convencionais para obterem algum tipo de efeito terapêutico.
É que os produtos alternativos têm também um caminho alternativo para a regulação. Enquanto um medicamento passa por um percurso longo e extremamente complexo para chegar ao mercado, os produtos utilizados nas terapias alternativas, sejam ervas, medicamentos homeopáticos ou suplementos alimentares, não. Toda uma via legislativa paralela foi criada para atender à falta de eficácia desses produtos, colocando em causa a saúde pública em detrimento do lucro. É estranho quando alguém defende que estes produtos são tão eficazes como os medicamentos e ao mesmo tempo faz lobby para a manutenção destas “vias facilitadas” de acesso ao mercado. É quase como se admitissem que sabem…que sabem que os seus produtos são inúteis para lá do placebo.
É também estranho ouvir os terapeutas alternativos falar dos interesses da indústria farmacêutica quando a Boiron, principal fabricante de medicamentos homeopáticos e produtora do famoso Oscilococcinum, fatura mais de 600 milhões de euros/ano. Ou quando a indústria chinesa faturou 114 mil milhões de dólares em 2015 com os seus “produtos tradicionais”. Ninguém trabalha de graça. Os interesses não são exclusivos da indústria farmacêutica.
Mas João Beles foi inteligente no debate. Utilizou falácia da popularidade, da quantidade, da autoridade e promoveu teorias da conspiração. Mas o mais inteligente foi a utilização da falácia Gish Gallop. Uma tentativa de atolar o adversário com um montante de informação aleatória, com fraca ou nenhuma credibilidade, sem conseguir focar num ponto específico, fundamentado e credível.
De propósito ou sem querer, a verdade é que a tática funciona. Para o ouvinte “desinformado”, a contínua citação de “estudos” por parte de João Beles que demonstram a suposta eficácia das ervas que promove, dá a sensação que a evidência está aí…para quem a quiser consultar. Mas mais interessante é a evidência que João Beles não cita. Dando dois exemplos concretos:
João Beles refere que a “sobrevivência aumenta em doentes que fazem quimioterapia e tomam Ginseng”. De facto existe alguma evidência promissora sobre o Ginseng nessa área. No entanto, uma revisão de 2014 diz que esses supostos benefícios foram vistos apenas em animais, sendo os estudos clínicos inconsistentes. O único estudo randomizado, controlado e duplamente cego demonstrou que não havia vantagens.
Ainda sobre Ginseng, João Beles cita um estudo de 2013 onde se verifica melhoria da fadiga dos doentes oncológicos quando suplementados com este produto. Mas não cita um estudo de 2017, também de desenho experimental, que não encontra vantagens nessa suplementação.
O problema com os terapeutas alternativos é este. Uma visão enviesada da evidência científica existente. Os cientistas dignos desse nome olham para toda a evidência produzida para tirarem a conclusão sobre a eficácia de um tratamento. Os pseudo-cientistas apenas selecionam a evidência que valida o seu ponto de vista, ignorando a restante. Quando esta incongruência é exposta, acusam os seus oponentes de estarem comprados pelos “grandes interesses”. De quererem defender o “lobby da indústria farmacêutica”. É este pensamento primitivo que abunda na área das terapias alternativas. E é por isso que é inútil discutir com crentes, pois mais do que nada, eles regem-se por uma profunda necessidade em acreditar.
Mas olhar para toda a evidência existente não é aceitar toda a evidência produzida como igual. Por isso é que ler e analisar estudos científicos é uma atividade extremamente complexa que requer muitos anos de estudos em diferentes áreas. Só quem não percebe isso se dá ao luxo de acusar, como fez João Beles, que as revisões sistemáticas produzidas pela Cochrane estão corrompidas pelos “interesses escondidos”. Isto porque as revisões sistemáticas tendem a olhar para toda a evidência existente e selecionar apenas os estudos de alta qualidade para emitir conclusões. Em 100 estudos é possível que se usem apenas 10. Em 1000 estudos é possível que se usem 5. Isto não é uma conspiração. É o rigor imposto por protocolos internacionais perfeitamente estabelecidos e transparentes para a produção deste tipo de revisões. Isto é boa ciência. Serve para evitar que o “ruído” dos vieses presentes em estudos de baixa qualidade contaminem os resultados observados. João Beles acha que isso é uma conspiração montada para desacreditar as terapias alternativas. Esquece-se de referir que esse protocolo é aplicado a todos os produtos utilizados na medicina convencional…mesmas regras.
Não existe uma medicina e uma medicina alternativa. Assim como não existe uma realidade e uma realidade alternativa. Só existe uma medicina, a que funciona. E uma realidade, a que os terapeutas alternativos teimam em negar. Esperamos por vocês aqui, no século XXI.
João Júlio Cerqueira é médico especialista em Medicina Geral e Familiar, especialista em Medicina do Trabalho e Miguel Mealha Estrada é Psicanalista Pediátrico especialista em Neurodesenvolvimento