Decorreu na passada semana, na Fundação Gulbenkian, a primeira metade de um curso destinado a professores de História do ensino básico (5º a 9º anos de escolaridade), ainda que professores de outras disciplinas e níveis de ensino, bem como profissionais das áreas pedagógicas de museus, pudessem igualmente participar. A formação procurava reflectir sobre os actuais programas da disciplina de História no que diz respeito ao tráfico de escravos e à escravatura, “apresentar abordagens alternativas”, desconstruir “alguns preconceitos ainda enraizados na memória pública portuguesa” acerca do “papel de Portugal no comércio de escravos”. A Fundação Gulbenkian informava que a dita formação seria ministrada por “académicos portugueses e norte-americanos cujo trabalho se tem destacado pela investigação deste tópico.” Eis aqui o programa do curso, onde poderão consultar-se os termos em que foi apresentado.

Já há muito que eu não sou professor do secundário e não assisti, claro está, às sessões de formação. Não posso falar sobre o que lá foi dito e ensinado (mas quem quiser poderá ficar com uma ideia dando uma espreitadela a esta notícia do Público). Não conheço as três pessoas norte-americanas que actuaram como formadoras, mas relativamente às portuguesas houve uma coisa que me chamou de imediato a atenção. Ao contrário do que a Gulbenkian disse, não parece haver entre elas nenhum(a) especialista em história do tráfico de escravos e da escravidão. Sei que uma dessas pessoas está ligada ao Slave Wrecks Project — uma rede internacional dedicada à investigação da história da escravatura —, nele desenvolvendo um inquérito sobre quem lucrou com o comércio negreiro, mas é antropóloga de formação e as suas publicações, tanto quanto me é dado ver, não versam sobre esses temas; as de outra pessoa, que é socióloga, também não; e há um historiador, sim, mas, ao que parece, terá investigado sobretudo problemáticas do século XX, na vigência do Estado Novo.

Ignoro qual o critério que presidiu a estas escolhas e não está em causa, claro, a competência das pessoas a que aludo, cujo saber é certamente imenso nas suas áreas respectivas. Acresce que é muito positivo que toda a gente fale sobre a história da escravatura e que não haja feudos e terrenos reservados apenas a alguns. Dito isso, parece-me que esta escolha de formadores tem um significado e transmite uma mensagem e é sobre isso que quero falar.

Que mensagem é essa? Para mim é a de que se procura uma ruptura, um corte profundo, com a narrativa que os historiadores construíram em décadas passadas para impor uma outra, de natureza mais culpabilizante ou justiceira — o que não significa mais verdadeira. De facto, parece-me peculiar que para uma acção de formação de professores portugueses sobre escravatura não se tenha convidado alguém com currículo nessa área e uma visão comprovadamente ampla sobre esse assunto. Não, não estou a pensar em mim. Penso, por exemplo — e sobretudo —, em Arlindo Manuel Caldeira, um historiador muito sabedor, que publicou vários livros sobre o assunto — o último dos quais este —, que tem muitas qualidades didácticas e que dedicou grande parte da sua vida profissional ao ensino secundário. Estaria, portanto, autenticamente em casa, digamos assim. Todavia, nem sequer foi sondado para o efeito.

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É verdade que os organizadores convidam quem querem e não têm de prestar contas das suas opções e preferências, mas fica a ideia de que houve o cuidado de evitar, ou de contornar, os historiadores mais velhos e ainda fiéis a uma sólida tradição historiográfica que nada tem de woke e que é vista como um obstáculo à propagação de uma mensagem mais imediatista e mais vingadora (ou reparadora) das injustiças do passado. Eu tenho essa ideia já há muito tempo e escrevi sobre ela, no Público, ainda antes de Marcelo Rebelo de Sousa ter ido ao Senegal e de todo este debate ter sido desencadeado. De facto, num artigo intitulado “Paint it Black” tentei mostrar que, nos Estados Unidos, os intelectuais, académicos e políticos negros queriam uma história contada à sua maneira e que parecia haver uma tendência para ignorar ou arredar os historiadores brancos — que, curiosamente, haviam sido os grandes construtores da historiografia da escravatura. Afirmei, também, que “a História não tem que ver com opções políticas, não tem que ver com preto ou branco, mas sim com a verdade. É isso que os historiadores prezam (ou deviam prezar)”.

Na altura em que escrevi esse texto referia-me aos Estados Unidos, sem saber, ainda, que essa tendência chegaria cá — ou talvez já cá estivesse, até, mas em surdina. Porém, o debate em que tenho participado e a atenção que passei a dispensar a este assunto depressa me abriram os olhos para o que se passa aqui. E fizeram-me perceber, igualmente, que o ponto mais apetecível para os que querem impor a nova narrativa, e mais vulnerável para os que se lhe opõem, é o ensino. Quando o debate sobre escravatura começou no nosso país, em abril de 2017, as pessoas de extrema-esquerda que o desencadearam estavam provavelmente convencidas de que iriam vencê-lo sem grande dificuldade e que iriam conseguir impor rapidamente os seus pontos de vista na sociedade portuguesa, atingindo a breve trecho as metas que visavam. Não aconteceu assim e a partir de 2019, depois de vários embates nas páginas dos jornais, essas pessoas tiveram tendência para aparecer menos no palco da discussão pública e para privilegiarem a tentativa de alteração dos manuais de História e dos programas de ensino da disciplina.

Lembro-me de que várias pessoas — Jaime Gama, por exemplo — se insurgiram, então, com o que parecia estar a cozinhar-se e eu, pela parte que me toca, comecei, ainda em 2019, a chamar a atenção dos que me lêem para a importância fulcral do ensino neste combate cultural. Voltei ao assunto várias vezes — ver, por exemplo, o artigo “Fazer reset e avançar pela calada” — e aqui estou de novo a apontar essa questão. Que não é, ao contrário do que possa parecer, apenas uma questão de esquerda versus direita. A questão vai muito para lá disso e tem sobretudo que ver com verdade, razoabilidade e equilíbrio, coisas indispensáveis a uma visão histórica correcta. Arlindo Manuel Caldeira, que referi acima, é um homem de esquerda, com o qual, enquanto historiador, tenho algumas divergências. Todavia é um historiador bem informado e uma pessoa pouco dada a radicalismos. Talvez por isso não agrade aos activistas woke que dão gás a estas causas. Nas minhas investigações nas redes sociais, encontro pontualmente gente woke a sublinhar que Arlindo Caldeira tem uma opinião parecida com a minha, pois, segundo quem o acusa desse pecado, Caldeira diria “que é preciso contextualizar as coisas, que os portugueses de hoje não têm de assumir os actos dos de outrora, que a história está cheia de iniquidades e não há nada a fazer”, ou seja, tudo coisas sensatas que os woke em questão, todavia, consideram “blá, bla, blá”. Outros escrevem que Arlindo Manuel Caldeira lhes suscita “imensas reservas”.

Terá sido por isso que ele e outros como ele não foram convidados para ministrar aquelas acções de formação a professores de História do ensino básico? Ignoro. Aliás, desconheço os meandros e bastidores destas coisas. Apenas constato que as três pessoas portuguesas escolhidas para dar formação em história da escravatura não são — ou não eram, até há pouco — especialistas nessa área, e que parece ter-se criado uma parceria entre a Gulbenkian e a Slave Wrecks Project para juntar duas linhas de intervenção destinadas a promover uma nova narrativa sobre a história da participação de Portugal no tráfico transatlântico de escravos. Não me interpretem mal. A Slave Wrecks Project, que começou por estudar navios negreiros naufragados para, a partir desse estudo, caso a caso, ficar a saber a origem dessas trágicas viagens, quem as custeou, capitaneou, etc., é, pelo que sei, um projecto excelente que interessa à nossa História, desde que não sirva para impor, condicionar ou orientar a forma como a ensinamos aos jovens portugueses. E a excelência da acção da Fundação Gulbenkian em prol da cultura escusa de ser explicada pois toda a gente a conhece. A Gulbenkian acolheu há poucos meses uma conferência do historiador anglo-canadiano David Eltis para apresentar o seu Atlas do Comércio Transatlântico de Escravos. Tem o meu aplauso. Eltis é um óptimo historiador, com décadas de profícuo e profundo trabalho nesta área de estudo e o seu (e, também, de David Richardson) Atlas é uma obra que recomendo a quem queira saber mais sobre aquilo a que os abolicionistas de Oitocentos chamavam o “odioso comércio”. Agora se a Fundação Gulbenkian patrocinou uma acção de formação sobre história da escravatura para professores do ensino básico que, aparentemente — falo apenas nos formadores portugueses —, não foi ministrada por pessoas especializadas nesta área do conhecimento, bom, aí já tenho reservas, mas a Fundação Gulbenkian lá terá as suas razões que esclarecerá, se assim o entender.