Há muitos séculos, o então patriarca da Igreja Ortodoxa Russa afirmou que a primeira e a segunda Roma tinham caído, mas que a terceira Roma não cairia. Uma afirmação que deixava claro que a Igreja Ortodoxa Russa considerava a «mãe Rússia» como a legítima herdeira do Estado medieval que compreendia não apenas a Rússia, mas também outras regiões, designadamente aquelas que constituem as atuais Ucrânia e Bielorrússia. Era essa a terceira Roma que nunca cairia.
No ano 22 do século XXI, no quarto dia da invasão russa da Ucrânia, o patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, Cirilo I, colocou-se publicamente ao lado de Putin ao classificar como «forças do mal» todos aqueles que, na Ucrânia, combatiam a unidade da Igreja Ortodoxa Russa. Uma afirmação que não pode ser explicada apenas pelo facto de, em 2019, ter havido uma cisão que levou a que, com o reconhecimento do patriarca de Constantinopla, a Igreja Ortodoxa Ucraniana deixasse de estar sobre a tutela da Igreja Ortodoxa Russa, embora continue a haver ucranianos que mantêm o respeito ao patriarca de Moscovo e não ao de Kiev.
A meu ver, a questão está longe de se circunscrever ao foro religioso e as palavras do patriarca russo têm uma clara intenção política. A mesma intenção já detetável em anteriores manifestações de apoio à política interna e externa de Putin. Daí a condenação das manifestações em solo russo contra a política putiniana. Por isso, a bênção da máquina de guerra russa aquando da saída para ações militares no estrangeiro. Atos em perfeita consonância com uma afirmação proferida em 2012, quando classificou a presidência de Putin como um milagre de Deus.
Atitudes que também se inserem na mesma linha de ação que subjaz às palavras da segunda figura da Igreja Ortodoxa Russa Hilarion Alfeyev, quando, em 2018, defendeu o apoio militar de Putin ao regime sírio de Bashar-al-Assad, mas que não são vistas com bons olhos por parte de toda a comunidade, pois 236 sacerdotes e diáconos fizeram questão de se distanciar das palavras do patriarca numa carta em que definiram a invasão russa da Ucrânia como uma guerra fratricida. Uma atitude corajosa, uma vez que é sobejamente conhecida a forma como Putin lida com quem ousa pôr em causa a sua forma de estar na vida política. A vida habitual quando um populista se senta na cadeira do Poder.
A investigação que venho desenvolvendo há muitos anos sobre o fenómeno populista permitiu-me perceber que o recrudescimento do populismo só ocorre quando estão reunidas condições objetivas e subjetivas, sendo que as últimas passam pela existência de um líder carismático. O único capaz de interpretar o oráculo do povo devido à sua condição de ungido por uma força superior.
Na conjuntura atual, a hierarquia que comanda a Igreja Ortodoxa Russa vê em Putin uma espécie de messias. Alguém a quem foi confiada uma missão que não está ao alcance do comum dos mortais. Mais do que eleito, Putin foi o escolhido. Que essa escolha se tenha traduzido numa política expansionista de que a invasão da Ucrânia com o consequente massacre de civis indefesos constitui o mais recente e dramático exemplo, são contas de outro rosário. Aquele que Cirilo I não faz questão de desfiar. Um dado passível de interpretações que vão para além da dimensão religiosa.
De facto, é sabido que, pelo menos desde 2005, Putin considera um enorme erro o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), uma conjuntura em que a Igreja Ortodoxa Russa sentiu na carne e no erário a perseguição de Moscovo. Como explicar então o crescente aproximar entre as sedes do Poder político e religioso, sedeadas em Moscovo? Será que mais do que um regresso da URSS é o espírito do Império Russo que está a definir a agenda de Putin e de Cirilo?
Face ao exposto, poucas dúvidas restam de que a invasão russa da Ucrânia não se resume à questão de Donetsk e Luhansk ou do Donbass. É mais profunda, com a agravante de a religião – melhor, a hierarquia de topo da Igreja Ortodoxa Russa – não ser alheia ao atual sacrifício de inocentes.
Perdoa-lhe Deus, apesar de saber muito bem o que de muito mal está a fazer.