Devemos todos estar aliviados porque o Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas, e o Presidente da Assembleia da República, nossos representantes máximos, juntamente com uns quantos deputados essenciais, foram ontem a vacinar com a primeira dose da vacina anti-Covid-19. O Primeiro Ministro irá na próxima semana. É uma notícia feliz, mas que deixa algum pesar, porque o Presidente da República fica assim impedido de poder praticar um acto de “bom populista”, que poderia ser útil a Portugal: recusar ser vacinado com a vacina Anti-Covid-19 até que todos os portugueses idosos com idades superiores à sua tivessem sido vacinados. Desta vez o Presidente da República não se pôs em tronco nu para as câmaras, mas foi pena que não o tivesse feito, para que todos os portugueses o pudessem ver bem.

Começar por vacinar os mais velhos, os mais frágeis, com menos autonomia e capacidade de se defenderem, e ir descendo na idade, foi o que se fez em muitos países. Em Portugal, tudo fatalmente tinha que se confundir, baralhar, deturpar. Só um critério claro e linear baseado na idade e com muito poucas excepções, para além dos profissionais de saúde e auxiliares na linha da frente, assentes exclusivamente em fundamentos médicos, poderia impedir toda a sorte de atropelos e aldrabices; aberta a caixa de Pandora das prioridades com base em quaisquer outros critérios, a torrente de pilha-vacinas seria imparável.

Pouco importa se os pilha-vacinas estão nas listas de prioritários da “Task Force” ou se estavam numa pastelaria; se forçaram os critérios para serem “essenciais” ou se surripiaram vacinas para eles próprios a mãe e o cunhado; se são presidentes, ministros, autarcas, juízes, militares, polícias, médicos, gestores, ou trapaceiros anónimos: a imoralidade é a mesma – são vacinas desviadas de quem mais precisa. A “Task Force” serviu para privilegiar um conjunto de eleitos e para apaziguar aqui e ali, lançando lotes de vacinas, como biscoitos a cães famintos, às corporações que fazem mais ruído. Para se poupar à ingrata “task” da indicação dos prioritários nas instituições para onde manda vacinas, a “Task Force”, liberalmente, delegou essa responsabilidade nos órgãos de gestão das instituições que as recebem: só se poderia esperar a mais despudorada discricionariedade.

A que propósito se mandam vacinas para esquadras de polícia ou prisões – há lá muitos octagenários? A população em maior risco já foi toda vacinada? Não foi, porque a logística é muito complicada e dá muito trabalho? A que propósito se anuncia o envio de vacinas a hospitais privados, e não simplesmente a hospitais? Também foram enviadas vacinas para os lares ilegais, que precisam tanto como os legais? Os donos desses lares já protestaram?  As reclamações das corporações que têm ficado de fora da lista dos prioritários não tem parado de aumentar: os professores e pessoal auxiliar das escolas acham que são um grupo de risco; os funcionários dos centros de dia acham que estes devem ser abertos, a bem da saúde psicológica dos idosos que estão a sofrer em casa, e que para isso eles próprios têm de ser vacinados;  os médicos acham que têm de ser todos vacinados e que estão a ser discriminados e humilhados. Os idosos que ainda não foram vacinados têm permanecido em silêncio, nem têm sindicato que os represente.

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Para cúmulo da hipocrisia e do absurdo, para calar protestos e manter a aparência de seriedade, anuncia-se que que se irá investigar os casos “ilegais” e que o desvio de vacinas será “exemplarmente punido”– que é como tentar reter a água do rio com uma peneira e depois ir à procura dela no mar.

Às listas de vacinados indevidamente (cargos políticos incluídos), podemos contrapor listas com nomes de pessoas reais que ainda não foram vacinadas e que estão em extrema fragilidade. Alguns irão provavelmente morrer antes de serem vacinados, de Covid ou de outra causa. Há idosos que sabem que não lhes resta tempo para esperar pelo final da pandemia para poderem voltar a viver alguns dias de normalidade e de liberdade. A estes a vacina também é roubada.

Em Espanha, que tem critérios de vacinação rigorosos que não contemplam a “importância” de cargos, os pilha-vacinas com maior visibilidade são ridicularizados publicamente – o vexame público é a condenação e a pena. Dão desculpas patéticas (todas as desculpas são patéticas), envergonhadas, quando têm uma câmara à frente levantam os olhos com dificuldade: corajosamente ofereceram o braço à seringa para dar o exemplo e mostrar que a vacina é segura; foi para não se desperdiçar vacinas que sobraram; um bispo seguiu as ordens do papa; não sabiam que estavam a fazer algo de errado; foi por solidariedade com os subalternos; foram forçados, até nem gostam de vacinas. Houve demissões de autarcas, do general chefe do Estado Maior da Defesa (para não manchar o prestígio da instituição), o bispo infiltrado num lar de idosos renunciou à segunda dose da vacina. Estes pícaros lembram aqueles viajantes do Titanic que se disfarçaram de mulher para ter lugar nas balsas de salvamento. Podiam todos desfilar numa sátira de Gil Vicente.

Em Portugal, as mesmíssimas desculpas patéticas elevam-se a valorosas justificações; os pilha-vacinas olham de frente, com naturalidade, até com arrogância – não há desculpas envergonhadas. Em Portugal a imundice engoma-se. Depois do espectáculo degradante dos políticos a decidir quem deve e quem não deve ser vacinado, temos os jornalistas e comentadores a discutir o mesmo! Somos a cultura do privilégio. O privilégio acima da solidariedade. O pináculo da desfaçatez na justificação de vacinações indevidas, penosamente revelador de uma cultura de privilégios e de impunidades, foi atingido pelas arrogantes e abjectas declarações de uma gestora de um grupo privado de saúde, divulgadas neste jornal, que do alto da sua eficiente insensibilidade, justifica a vacinação de cima a baixo no seu grupo, incluindo a sua – declarações destas podiam ser usadas em hospitais para induzir o vómito (faça-se o registo da patente para o inovador método).

Os que recusaram a vacina foram apodados de insinceros (por serem novos e correrem poucos riscos), demagogos, populistas, insensatos, cobardes (por terem medo de encarar críticas), surpreendentes e inúteis. Esta inversão do ónus da justificação é típica dos cobardes e dos que não têm argumentos: não queremos que nos expliquem porque é que quem recusou a vacina o fez; nem tão-pouco que digam porque é que têm direito a ser vacinados antes de um reformado de 80 anos; queremos sim que digam, porque é que a vossa vida vale mais que a de um reformado de 80 anos. Nesta matéria não há insubstituíveis, ou todos são insubstituíveis.

Eis o que disse a porta-voz do governo espanhol quando questionada sobre a vacinação do rei (que é o único cargo de estado onde poderá haver alguma dificuldade de substituição): “El-Rei Felipe VI será vacinado quando lhe corresponder a sua vez em função do grupo de risco a que pertence, como ocorre com os membros do governo. Somos todos iguais e a única coisa que nos diferencia é a nossa vulnerabilidade em relação a doenças prévias, idade e condições de habitabilidade.” Aqui tão perto, e tão longe de nós!

Não é nenhum acto de coragem esperar serenamente na fila das vacinas pela nossa vez, é apenas ser lúcido e minimamente civilizado – a probabilidade de morrer de Covid não é assim tão alta (consulte-se as estatísticas) e é possível reduzir muitíssimo o risco de contágio usando uma boa máscara, correctamente (como os ministros e Presidente agora fazem) e respeitando outras regras de segurança.

A políticos e pessoas com cargos de chefia é exigido (deveria) que sejam lúcidos e que o medo não lhes tolde de todo o raciocínio, se o tiverem. E o valor do exemplo, neste caso, não pode ser amesquinhado, porque tem um alcance mais largo e profundo, sobretudo no momento que vivemos – está em causa a credibilidade de quem governa; e para além disso, como pode uma sociedade progredir, sem referências morais, que se elevem acima de egoísmos e interesses, pessoais ou corporativos?  Um governante que não entende isto, não pode prestar para ocupar o cargo que ocupa.

Durante a epidemia da febre amarela em 1857, muitos foram os que desertaram de Lisboa, ministros e deputados incluídos. D. Pedro V, por outro lado, sobressaiu pelas visitas que fazia aos hospitais. Foi imediatamente acusado de apenas querer colher os louros da popularidade, onde podia ter encontrado a morte. Em cartas ao Conde de Lavradio e ao Príncipe Alberto, o sofrido rei lamenta a falta de homens capazes para enfrentar a epidemia e a campanha de aviltamento de que foi alvo: “Numa altura em que muitos fugiram, eu fiquei. Se uma tal acção merece crédito, então sou levado a dizer que o obtive (…) O perigo é uma prova de toda a força humana, e o perigo não era, na verdade, maior do que aquele que se corre na guerra (…) Fazem-me o favor de me fazer passar por mais calculador do que realmente sou, e de obrigar-me a persuadir-me involuntariamente que valho bastante para que convenha fazer-me mal”.

E sobre este desvalorizar, este achincalhar, este puxar para o chão, de quem ousa divergir do comportamento dominante, que parece fazer parte do nosso património cultural, vale a pena recordar algumas palavras de Oliveira Martins durante a crise financeira de 1891 que levou o país à bancarrota: “…devo dizer que este sintoma de degradação mental é a mais grave doença que pode atacar um povo. Quando não há outra fé, nem outra veneração mais do que pela astúcia dos manhosos e pelas artes dos embusteiros; quando se aclama unicamente o êxito e se ajoelha só perante a força e a riqueza, quando a virtude se considera inverosímil e extravagância o civismo; quando as sociedades caem na senilidade do egoísmo estúpido, podem sim, agitar-se em crises de epilepsia política, mas não podem retemperar-se e renascer para a vida forte e saudável. A anarquia demagógica foi, em todos os tempos, em toda a parte, o sintoma certo da dissolução das nações.”