Tem havido exageros nas políticas de combate à crise sanitária. É verdade que o medo está instalado e as pessoas vêem na testagem de rastreio uma forma de mais rapidamente detectar possíveis casos de pessoas que irão “desatar a infectar outros na calada”. Isto é muito desproporcionado (para sermos brandos). É tempo de discutir com verdadeiro contraditório a ideia de que os assintomáticos transmitem com “elevada probabilidade” e que facilmente se gera um efeito bola de neve incontrolável. Apesar do tema da transmissão por assintomáticos merecer uma atenção especial, neste artigo iremos focar-nos na interpretação e consequências que se encontram subjacentes à ideia – que se tem generalizado – de que existem vantagens na implementação de uma estratégia que privilegie rastreios em massa.

E começamos desde já por afirmar que o maior problema da testagem em massa é a enorme percentagem de falsos positivos. Não somos nós que o afirmamos: é a OMS. Mais do que isso, é a Matemática e a Estatística. Qualquer que seja a especificidade do teste, a testagem em massa, ao alargar os critérios de testagem – tornando-se praticamente aleatória –, acarreta necessariamente uma menor prevalência na amostra (a percentagem dos que estão realmente infectados no total dos testes realizados), próxima da prevalência na população, levando a um aumento na proporção de falsos positivos no total de resultados positivos.

Citando a OMS:

“A OMS lembra que a prevalência da doença altera o valor preditivo positivo dos resultados dos testes; à medida que a prevalência diminui, o risco de falsos positivos aumenta. Isto significa que a probabilidade de uma pessoa que tem um resultado positivo a um teste estar realmente infectada diminui à medida que a prevalência diminui, qualquer que seja a especificidade do teste”.

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Os cálculos não são complexos – é uma simples aplicação do Teorema de Bayes, que é dado na Matemática do 12º ano e revisto na cadeira de Estatística do primeiro ano dos cursos de Medicina e Jornalismo. Mas o facto é que estamos há um ano sem ninguém falar disto na televisão. Para evitar equações matemáticas, ilustraremos a questão graficamente através de quatro simulações, para se perceber a dinâmica envolvida.

Assumindo valores para a sensibilidade de 95,0% e para a especificidade de 98,75%, os resultados seriam os seguintes:

Prevalência de 4% acarretaria 24% de falsos positivos.

Prevalência de 1% acarretaria 57% de falsos positivos.

Prevalência de 0,2% acarretaria 87% de falsos positivos.

(Prevalência de 10% acarretaria 11% de falsos positivos.)

Na secção 5 deste texto incluímos uma tabela que simula a percentagem de falsos positivos para valores de especificidade ainda maiores, entre 98,75% e 99,6%. Se, no limite, a especificidade fosse 99,6%, teríamos, com 0,2% de prevalência na amostra, 68% de falsos positivos; com 0,1% de prevalência na amostra, 81%. Ou seja, o problema mantém-se: desde que haja testagem em massa que conduza a uma prevalência na amostra menor do que 1-2%, teremos uma enorme percentagem de falsos positivos.

1 Simulação com prevalência na amostra de 4%

Fazemos a simulação recorrendo a “quadradinhos”, para mais fácil contagem visual. A amostra total nesta simulação é de 500 (por questões de pedagogia). Se temos uma prevalência na amostra de 4%, isso quer dizer que há 20 infectados (500 * 4%) e 480 não infectados.

Uma sensibilidade de 95% significa que 95% dos 20 infectados – ou seja, 19 – são corretamente detectados como verdadeiros positivos. Portanto, o total de 20 infectados decompõe-se em 19 verdadeiros positivos e 1 falso negativo.

Uma especificidade de 98,75% significa que 98,75% dos 480 – ou seja, 474 – dos não infectados são corretamente detectados como verdadeiros negativos. Portanto, o total de 480 não infectados decompõe-se em 474 verdadeiros negativos e 6 falsos positivos.

A taxa de falsos positivos (igual ao oposto do Valor Preditivo Positivo) é a probabilidade de uma pessoa que tem um resultado positivo não estar realmente infectada. É uma probabilidade calculada “depois” de realizados os testes – enquanto que a especificidade está relacionada com a margem de erro para falsos positivos “antes” de realizados os testes.

Ela é dada simplesmente pela proporção de falsos positivos no total de positivos.

Em termos gráficos, trata-se do rácio entre os quadrados “verde berrante” (falsos positivos) e a soma dos quadrados “verde berrante” (falsos positivos) com os quadradinhos “verde claro” (verdadeiros positivos), que nos dá o total de resultados positivos.

Neste exemplo, é igual a 6/(6+19) = 6/25 = 24%.

Ou seja, 24% do total de resultados positivos são falsos. Dito de outro modo, a probabilidade de, perante um teste positivo, ele ser falso, é de 24%. O oposto disto, 76%, é o valor preditivo positivo: a probabilidade de, perante um resultado positivo, ele ser verdadeiro.

A questão que baralha muitas pessoas é o facto de a margem de erro para falsos positivos pré-teste, que é 1,25%, o oposto da especificidade (assumida aqui como sendo 98,75%), não ser igual à margem de erro pós-teste. É que, antes do teste, o “denominador” para calcular a margem de erro é o total de não infectados; mas, depois do teste, o denominador é o total de positivos, porque estamos a “condicionar” no resultado (já conhecido) dos testes.

Para quem sabe o Teorema de Bayes isto é muito básico. Mas quantos virologistas, pneumologistas, epidemiologistas, médicos, estatísticos e matemáticos falam disto há um ano sem nunca referir a diferença entre a margem de erro “pré-teste” e a margem de erro “pós-teste”?

2 Simulação com prevalência na amostra de 1%

Se a prevalência na amostra baixar para 1%, teremos menos infectados – apenas 5, que se decompõe em 4,75 verdadeiros positivos e 0,25 falsos negativos.

Os não infectados somarão 495, que se decompõe em ~489 verdadeiros negativos e ~6 falsos positivos.

Neste caso, o total de positivos é de ~5 + ~6 = ~11, pelo que a taxa de positivos será aproximadamente de 6/11 = ~57%.

Porque é que a taxa de positivos subiu? Com a prevalência a descer, o número de infectados desce muito. Isto é visível porque a “coluna” de infetados passou de 20 para 5. Os mesmos ~6 falsos positivos que temos, e que já tínhamos com 4% de prevalência na amostra, são agora uma proporção muito maior do total de positivos – o denominador encolheu, em virtude de um número menor de verdadeiros positivos.

3 Simulação com prevalência na amostra de 0,2%

Com prevalência de 0,2%, temos apenas 1 infetado por 500 testes, que se decompõe em 0,95 verdadeiros positivos e 0,05 falsos negativos.

Os 499 não infectados decompõe-se em ~493 verdadeiros negativos e ~6 falsos positivos.

Como vemos, o número absoluto de falsos positivos é aproximadamente o mesmo, ~6, contudo, o denominador desceu bastante. Agora temos apenas ~1 verdadeiro positivo, logo, o total de positivos é ~7. Isto faz com que a taxa de falsos positivos seja de aproximadamente 6/7 = ~87%.

Por curiosidade, vejamos o que aconteceria com uma prevalência de 10%.

4 Simulação com prevalência na amostra de 10%

Com prevalência de 10%, temos 50 infetados por 500 testes, que se decompõe em ~47 verdadeiros positivos e ~3 falsos negativos.

Os 450 não infetados decompõe-se em ~444 verdadeiros negativos e ~6 falsos positivos.

Neste caso, o numerador continua a ser ~6, mas o denominador é muito maior! Temos agora ~47 verdadeiros positivos e ~6 falsos positivos, ou seja, o total de positivos é ~53, logo, a taxa de falsos positivos é de aproximadamente 6/53 = ~11%.

É por esta razão que, com prevalência na amostra de 10% (ou superior), geralmente se considera que o problema dos falsos positivos é tolerável (ainda assim não dispensando a recomendação, a nosso ver, de contra-prova para assintomáticos). Mas a testagem em massa implica prevalências muito baixas e isso leva, necessariamente, a uma enorme proporção de falsos positivos.

5 Prevalência na amostra e taxa de positividade

A percentagem de resultados positivos no total da amostra – a famosa “Taxa de Positividade” – é diferente da prevalência na amostra. A relação entre elas é matematicamente simples, dependendo dos valores de sensibilidade e especificidade. Na tabela seguinte apresentamos a % de falsos positivos para diferentes valores de taxa de positividade, na segunda coluna da tabela (% Pos.), e de especificidade. A primeira coluna diz-nos qual a prevalência na amostra que “subjaz” à taxa de positividade da segunda coluna, e é calculada (“retrapolada”) assumindo especificidade de 99,3%. Todos os valores consideram sensibilidade de 95%.

6 Conclusões

Sem contra-prova, ou seja, apenas olhando para o resultado do “primeiro teste”, a percentagem de falsos positivos sobe facilmente para cima dos 80% quando a prevalência na amostra é menor que 0,2% (a qual está associada a uma taxa de positividade observada de 0,8%-1,5%, assumindo valores médios de Especificidade entre 98,75% e 99,3% – que são realistas para o atual mix de Testes PCR e Testes Antigénio).

Nas condições atuais, com a Primavera e a baixa prevalência na população (e, por conseguinte, nas amostras diárias), a ideia de rastreios em massa, na prática quase aleatórios, pode levar facilmente a prevalências amostrais (1ª coluna) não só abaixo de 1%, como até abaixo de 0,2%, associadas, respectivamente, a taxas de positividade de 1,5-2% e 0,8-1,0% (2ª coluna). Esta é uma realidade que deverá levar os responsáveis a reequacionar a proposta de testagem em massa, dados os poucos benefícios e os muitos riscos – nomeadamente, de enclausurar um elevado número de “inocentes”, que apenas sofreram do “efeito estatístico” inerente a uma baixa prevalência.

É indiscutível que a questão dos falsos positivos é muito relevante quando temos uma taxa de positividade baixa (de 1-2% ou menos) e quando não há exigência de contra-prova. É impossível, nestas condições (de baixa positividade e sem exigência de contra-prova), não haver 80% ou mais de falsos positivos.

Por esta razão, recomendamos tornar obrigatória a contra-prova a qualquer resultado positivo de uma pessoa assintomática antes de a declarar como um “caso”; e também rever a política de testagem em massa, privilegiando a testagem mais criteriosa – focada em sintomáticos e acompanhada de diagnóstico clínico, como recomenda a OMS.

Está na altura de trazer, acerca do tema dos falsos positivos, sobretudo em contexto de baixa positividade, mais amplitude e pedagogia a um debate que tem sido pouco heterogéneo.