Um dos momentos mais sagazes do poeta latino do séc. I a. C., Ovídio, foi o de considerar de forma peremptória que o amor, como todas as outras artes antropológicas, poderia ser ensinado às pessoas a desenvolver ao longo da vida, independentemente de quaisquer condicionalismos circunstanciais de cada indivíduo no contexto em que está inserido. Por isso, desdobrou-se num esforço desmesurado para provar tão grande intento. Fê-lo através da sua promíscua obra Arte de Amar; obra essa que se circunscreve em facultar aos putativos amantes as ferramentas “indispensáveis” de sedução, fetiche e conquista em última instância. Uma façanha apenas para os “mestres de amor”, tal como o próprio presunçosamente se autoproclamou.

Feito este brevíssimo intróito, deixemos agora de lado Ovídio e atentemos para o conceito terminológico do amor. Afinal de contas, o que é o amor? E quais são os seus predicados axiológicos na vida dos amantes? O amor, de forma subsumida, é uma força sobrenatural que visa aproximar e unir os seres numa relação bastante especial. No grego bíblico onde o termo ganhou mais relevo e projecção mediática para as outras civilizações mundiais, o amor envolvia três importantíssimos significados etimológicos, que são “agapé”, “philia” e “eros”, abarcando o círculo tridimensional do Homem na sua esfera inter e extra-relacional com os seus semelhantes, bem como com o Divino mediante a religião. As demonstrações do amor nestas três vertentes da cultura helénica, máxime o amor “eros”, comportam torrentes de sentimentos hipertrofiados que nos levam, muitas das vezes, a perder a noção do juízo. Talvez seja por este motivo que exista um consenso generalizado entre os seres humanos que o amor é irracional, visto que “o coração tem as suas razões que a mente desconhece”, sustentava Pascal na sua construção doutrinária sobre o amor. Que razões indesvendáveis são essas que não são cognoscíveis? Serão, porventura, as de amar e não ser amado? Eis as insondáveis questões que nos interpelam.

Deixemos agora de lado as concepções dogmáticas e atentemos na realidade prática da alcova do amor, o centro nevrálgico de todas as emoções humanas. Uma das características imprescindíveis e irrenunciáveis do amor é o coração, tal como este simboliza na perfeição aquele. O coração não faz sentido sem o sustentáculo do amor. E o amor não se realiza sem a estreita colaboração do coração. Não há amor sem coração e, muito menos, o coração sem amor. Perder o coração é deixar escapar irreversivelmente o amor e vice-versa. São duas realidades visceralmente intrínsecas dentro do Homem, geradoras de sentimentos indescritíveis e indomáveis ao ponto de abalar fortemente com toda a nossa estrutura físico-emocional, deixando-nos sem autodomínio e à mercê da deriva da paixão (que o diga, por todos, Propércio, Tibulo, Catulo, Virgílio e tantas outras mulheres e homens que foram fortemente “dilacerados” pela loucura do amor).

Deixemos agora de lado as formulações filosóficas e parábolas do amor e atentemos na sua “causa efeito” nos corações dos comuns mortais, mormente a razão última da sua existência. Uma das matrizes e pressupostos valorativos do amor é a partilha. Não uma partilha adulterada, baseada em meros caprichos individualistas, mas sim numa convivência sã, fidedigna, incondicional e perpétua, envolvendo sempre a exequibilidade sentimental que deixa marcas profundamente indeléveis na vida dos amantes. “Despedaçamos” a metade do nosso sensível coração para juntá-lo com um outro coração “partido”, que se identifica plenamente connosco, mediante o acasalamento e a consumação, passando assim a formar apenas um só corpo e um único propósito de vida. Uma completa e deliberada alienação que transcende a lógica racional.

É justamente por todas estas vicissitudes comportamentais que o amor é uma submissão, inconformismo, tortura, sofrimento, prisão e escravatura consentida por aqueles que realmente amamos. Apesar de toda esta torrente de “erosão sentimental”, que o amor acarreta e encerra na vida dos amantes, ele também é indubitavelmente comunhão, protecção, partilha, beleza, doçura, afeição, arrebatamento, satisfação e felicidade. Mistério, portanto, paradoxal.

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