Escrevo este texto na antecâmara do dia 5 de dezembro, data em que celebramos liturgicamente a memória desta ilustre figura, e que, de certa maneira, imprimiu traços únicos e distintos na comunidade e no seu território, criando o caminho que conduzirá à assunção e à construção de uma identidade que estará na génese do movimento independentista de Portugal, afirmando-se como nação e como povo singular. Falamos, pois, de São Martinho de Dume (também conhecido, embora não tanto, por São Martinho de Braga).

De um grande dinamismo pastoral, missionário e intelectual, São Martinho congrega em si o modelo (eloquente) de peregrino. Vejam, movido pela vontade de evangelizar, virá do extremo este da Europa, de uma região então chamada Panónia (hoje estaria no território da actual Hungria), conseguindo recristianizar e, até, reorganizar a vida cívica e social do território da Arquidiocese de Braga, acabando por morrer nesta cidade no ano de 579/80.

Na verdade, tudo começa no século VI com a conversão do rei Teodomiro e de todo o seu povo que, deixando o arianismo, aderiram à ortodoxia da fé católica. Este feito valeu-lhe o epítome (o título) de “Apóstolo dos Suevos”, sendo, igual e justamente, considerado um dos Padres da Igreja da Península Ibérica.

São Martinho é um homem muito ativo, de muita acção, de estar em movimento e de movimentar os outros, sempre muito preocupado com a implementação de um viver virtuoso, procurando renovar e reformular a sociedade de então. Este carácter reformador está intimamente unido a uma preocupação moralista que faz dele alguém com um perfil humanista e pragmático. De uma forte formação clássica, compreende a necessidade de abordar a fé com uma pregação mais simples, integrada no contexto e com uma linguagem simples e amplamente compreendida. Prova disso mesmo é o seu opúsculo “De Correctione Rusticorum” (Da Correcção dos Rústicos) que responde com estilo rústico, simples e directo aos erros que ele reconhecia haver no viver deste povo e deste território. A este propósito, é justo dizer que devemos a São Martinho o nome dos dias da semana que temos actualmente, imprimindo uma marca única no mundo, pois somente na portugalidade é usado esta nomenclatura para os dias da semana. Mais, aquilo que foi um pequeno fenómeno de cariz local (e, até, glocal) tornar-se-á, séculos depois uma marca global da portugalidade e da diáspora lusitana.

Se quisermos, ainda, ver em São Martinho de Dume uma inspiração para o tempo presente, basta ver, por exemplo em a “Regra da Vida Virtuosa”, como ele exalta o valor absoluto das virtudes, salientando a importância da razão, não só como um elemento universal, como, também, ser uma premissa essencial para o autoconhecimento e para o desenvolvimento pessoal e espiritual. Neste opúsculo podemos observar que São Martinho procura sustentar a sua argumentação a partir das quatro virtudes cardeais (a saber: prudência, magnanimidade, temperança e justiça), mostrando-nos, com muita clareza e assertividade, a razão como um elemento comum e universal, capaz de promover no homem a assunção de uma consciência ético-moral, capacitando-o na sua liberdade e autonomia e suscitando, concomitantemente, a consciência firme para um compromisso cívico, comunitário e eclesial. Através do pensamento filosófico de matriz platónica, São Martinho foi capaz de suscitar nos leitores e nos demais discentes do seu tempo um verdadeiro desejo pelo conhecimento de si próprio e do mundo em que vive a fim de potenciar e abrir o caminho para a adesão livre e conscientemente à fé e, aí, encontrar a resposta à sede de infinito que habita no coração de cada homem.

São Martinho de Dume aparece, no quadro actual, como sendo um autor e um pensador a ser revisto e relido, pois traz consigo a inquietante pauta que tece a construção de identidades virtuosas e edifica comunidades verdadeiramente de rosto humano, humanizadas e humanizantes.

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