1 Não conheço silêncio como o de Fátima. E não conheço talvez porque não haja. Como um véu espesso e quase misterioso o silêncio que cai sobre o Santuário mergulhado em oração, não tem igual.
Também não me lembro de atmosfera mais intimamente recolhida como a que envolve aquelas vigílias nocturnas no recinto do Santuário. Cada um está com Nossa Senhora, e quase se adivinha esse diálogo sussurado, secreto, singular, sofrido de cada peregrino com Maria, Mater Dei. Emoção, esperança, desesperança, fadiga, dor , temor, fé, alegria, pedras do caminho que lá nos leva. Sobre elas, imóveis e mudos, rezamos. Cânticos, velas acesas, por vezes terços nas mãos e de novo o silêncio, enquanto devagar ,uma imagem branca passa na mancha escura da multidão. Há um nó na garganta e um arrepio na pele e não se precisa que Nossa Senhora ali desça de novo sobre uma azinheira para perceber que aquilo a que se assiste é um milagre. Fátima é em si um milagre. Algo que se repete e renova, ano após ano, década após década, imutável e absolutamente inexplicável: porquê ali? Mas o estar “lá”, faz de nós membros activos da mensagem de Fátima através do que nos pede: oração e coração. Compromisso. (Santidade?)
Vi Fátima, viva, activa, perene, em longínquas paragens, nas Áfricas, no Brasil, em Singapura, na Oceânia. E na remota Indonésia, na minúscula Ilha das Flores, onde, numa Sexta Feira Santa o povo, de vela acesa na mão, quis associar Nossa Senhora à Paixão de seu filho e Nossa Senhora para eles era a de Fátima. Celebraram-na, cantando o Avé pelas ruas quentes da ilha numa sentida celebração que duraria horas infindas mas ninguém ali tinha pressa. Em todos esses lugares foi como se estivesse na Cova da Iria, em todos me dei conta do mistério e do milagre. Ser testemunha chamada a ser participante, eis o que obriga a emoção a transformar-se em responsabilidade.
2 Portador da desconhecida incerteza em que vivemos há já tempo de mais, nesta ultima quarta feira e quinta feira, o silêncio de Fátima era ainda mais simbólico. A dor que carregava quase se tacteava por dentro da noite e não fora as velas dos poucos milhares de peregrinos – pequenos pontos de luz por dentro da noite – alguém diria que ali se rezava um Requiem. Puro engano: foi um halo de esperança que Tolentino de Mendonça ali trouxe, ou melhor, um vento de esperança que nunca ali deixou de soprar por entre o frio da noite e a chuva da manha. Não é Fátima “uma alavanca da humanidade” como ele nos assegurou? Não é “inesquecível a ternura de Maria, completando o olhar do seu filho na cruz”, conforme nos lembrou? Então, deixe-se passar a esperança. Pratique-se a esperança apesar da incerteza, da provação. Ou melhor, por causa delas.
Cardeal, poeta e teólogo, arquivista do Arquivo Apostólico do Vaticano e Bibliotecário da Biblioteca Apostólica Vaticana, na Cúria Romana, José Tolentino de Mendonça, presidiu este ano às celebrações de Maio na Cova da Iria.
Um dia perguntei-lhe se se podia falar do poeta que ele é, do intelectual, do homem de cultura, sem falar de Deus. Não, não podia. “A procura de Deus é a dimensão mais forte da minha existência. Em última análise é dessa procura – humilde, inacabada, sempre a ser refeita – que me alimento.”
Conheço-o há muitos anos, trabalhei com ele, mas o que interessa é que cedo percebi que tinha o condão de, de algum modo, me pôr em sentido. Como quando de imediato nos apercebemos que estamos diante, ou ao pé, ou por dentro de coisas muito sérias. Talvez por isso também sempre me pareceu que não eram precisas palavras para falar de Tolentino. Bastam as suas. Pérolas raríssimas. E através desse colar imenso, o modo como nos interpela a vontade e toca fundo o coração, trazendo o sagrado para tão próximo de nós.
“Fátima?” perguntei-lhe uma tarde em que conversávamos os dois, na Capela do Rato: “Foi a coisa mais importante que aconteceu no século XX no mundo. “Nem ele nem eu sabemos se foi ou não. Que importa? Quer-nos parecer, a um e a outro, que foi sim. Foi.
3 “A mensagem de Fátima é fortíssima”, disse-me um dia o Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, numa (magnifica) entrevista que me concedeu e era quase só dedicada ao tema: “a mensagem lança-nos um repto de uma actualidade flagrante e que está no Evangelho”.
Surpreendi-me e não devia, com a descoberta de uma espiritualidade mariana, com a sua fortíssima convicção face ao fenómeno fatiminano, a desarmante, inteira simplicidade com que sempre o perfilhou, a franqueza com ,que diante de um gravador, me confessou que “gosta muito de ir a Fátima”: “Nem preciso de estar a pensar em nada, nem de dizer nada. Basta-me o estar, só estar ali.”
Nunca mais esqueci tão fortíssimo testemunho. Razão, fé, teologia, história, numa reflexão que reconduzia a mensagem de Fátima à centralidade do Evangelho.
“Em toda a tradição bíblica, a preferência – podemos dizer assim – de Deus, é para se manifestar no que é pequeno, no que é simples, no que é pobre, no que é desprovido. Mais pequeno que aquelas crianças à volta de um poço ou de uma azinheira, há cem anos, na Serra d’Aire, não podia haver.»
Foi há cento e quatro anos. E foi ontem, dia 13 de Maio de 2021. Um jornada em que vimos também no altar de Fátima, o Patriarca de Lisboa e o Bispo de Leiria Fátima, D. António Marto, ao lado do Cardeal Tolentino. Homens de muita fé e permanente testemunho sobre os quais o espirito decidiu soprar em abundância, nunca se fazendo rogado.
4 O Papa Francisco sabia bem o que fazia quando há dois anos e tal escolheu pescar um ainda jovem sacerdote chamado José nas águas dos nossos mares.
E Nossa Senhora, quando há cento e quatro anos escolheu uma árvore do solo português para se dirigir ao mundo em guerra através de três mensageiros improvabilíssimos, também sabia o que fazia. Não é de facto fácil “lidar” com uma e outra coisa e mesmo que os planos sejam distintos entre si, ambas confundem e nos confundem. Mas deve ser aí mesmo que reside a invencível força delas.
PS: Mais uma vez a Igreja se mostrou sábia. Ontem toda a equipa do Reitor do Santuário esteve a altura de desafio espinhoso: sem aparato nem ruído, antes com uma sobriedade discreta e uma imensa experiência, encenou com rigor e primor, as cerimonias que vimos. Eis o que também se agradece e reconhece.