Enquanto o País está mergulhado em mais uma crise política, a SEDES iniciou o seu V Congresso sob o moto “50 Anos a Pensar Portugal”, olhando para o médio a longo prazo, para os problemas estruturais e profundos do País. Para além do diagnóstico e o benchmarking internacional a SEDES propõe um conjunto de reformas, no mesmo espírito de quando foi criada em 1971, quando teve um papel crucial na democratização do país, na instituição das liberdades e no desenvolvimento económico e social, com pessoas como João Salgueiro, Sá Carneiro, António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa.
A primeira das doze sessões que irão decorrer, durante todos os fins de semana, até 5 de dezembro, dedicou-se à reforma do sistema político. A grande questão que deveria preocupar as nossas elites é: “Quais são os defeitos do sistema político das últimas duas décadas que nos conduziu à estagnação económica?” e, logo a seguir: “Quais são as reformas necessárias para que isso não volte a acontecer nos próximos 20 anos?”.
É evidente que nem a ciência política nem a economia se desenvolveram o suficiente, e duvidamos que mesmo algum dia o conseguirão, para formular um conjunto de receitas que serão suficientes para promover a democracia e o desenvolvimento, mas sabemos que a continuação do status quo não vai, por um qualquer milagre, levar-nos a um caminho diferente, e também sabemos que são necessárias reformas estruturais para que o país entre numa fase de progresso, tendo como preocupação o desenvolvimento social, uma democracia de melhor qualidade e crescimento económico.
Uma grande parte dos estudos que se têm feito entre nós focam-se no diagnóstico dos problemas económicos e nas políticas que poderiam levar a um maior crescimento. Este é o couto dos economistas. Porém, são escassos os trabalhos sobre a iteração entre a política e a economia: porque é que os governos escolheram determinadas políticas e não outras? Como é que o sistema político e as instituições afetam a escolha destas políticas? Os economistas podem clamar pela necessidade de se adotarem certas políticas, ou no espírito Pigouviano, demonstrar que uma dada política maximizaria o bem-estar social. Mas, se os dirigentes políticos, que atuam dentro de uma certa estrutura política e social, preocupados por ganharem as próximas eleições, não adotarem essas políticas, o trabalho dos economistas é em vão.
A economia política do desenvolvimento, dos quais destacamos dois grandes expoentes: Daren Acemoglu do MIT e Tim Besley da London School of Economics, tenta estudar, formulando modelos e fazendo análise empírica, entre outras, as seguintes questões: (i) a qualidade e a estrutura das instituições que condicionam o desenvolvimento económico; (ii) porque é que os grupos de interesse organizados têm um poder de determinar as políticas escolhidas superior aos interesses difusos; (iii) a qualidade e competência das elites políticas é importante para o desenvolvimento, mas não é certo que o sistema político assegure essa qualidade, e é mesmo possível que se perpetuem elites de baixa qualidade; (iv) a democracia e a qualidade da democracia influenciam o crescimento e é fundamental assegurar um sistema concorrencial e aberto para que aquela assegure o desenvolvimento; (v) a corrupção e a dominância das políticas por um grupo restrito de interesses pode bloquear o crescimento (no sentido de Mancur Olsen). Para estudar todas estas questões aplicadas a Portugal seria necessário um vasto programa de investigação, que os nossos Institutos e Centros deveriam empreender. Aqui só nos limitamos a abordar alguns temas, de ordem positiva ou normativa, que nos parecem fundamentais para lançar a discussão que deverá preocupar os nossos políticos, empresários e académicos, e o cidadão em geral.
Os problemas da democracia portuguesa não são únicos. Outras democracias se debatem com problemas semelhantes aos nossos, como por exemplo, o fenómeno do populismo nos EUA e na Europa, a polarização e o radicalismo induzidos pelas grandes plataformas digitais ou a falta de qualidade das elites da governação. Procuramos aprender também com as experiências estrangeiras e com as melhores práticas internacionais.
1 Breve Diagnóstico das Falhas do Sistema Político
A primeira evidência de que a governação do País está doente é que os indicadores de desenvolvimento económico pouco progrediram, o PIB quase estagnou e caminhamos para a cauda da EU, em termos do PIB per capita, nas últimas duas décadas. Para além de o País estar altamente endividado, com o sistema financeiro fragilizado, temos um Estado fraco, e o setor público e grandes empresas continuam dependentes das transferências da EU.
1,1 Portugal tem baixado no ranking, a nível internacional, que carateriza a qualidade da Democracia, sendo hoje uma democracia com falhas.
Num dos índices mais conhecidos, o Democracy Index da Economist Inteligence Unit, de 2007 a 2017 a posição de Portugal baixou da posição 19ª para 26ª, tendo sido desclassificado do grupo de “democracias completas” para “democracias com falhas”. Neste período, a principal razão da queda foi a deterioração da qualidade do governo. Atualmente, são particularmente baixos os indicadores de qualidade da governação, cultura política e sobretudo o de participação política. Nos últimos anos, as o que mais baixou foi o de liberdades cívicas.
No índice de democracia do Instituto sueco V-Dem Portugal é classificado como uma democracia eleitoral, abaixo da democracia liberal, e além disso com tendência negativa.
Como mostra a Figura 1, a percentagem de votantes que se tem abstido nas eleições em Portugal tem subido continuamente desde a restauração da democracia em 1975 (um dos principais indicadores de de-franchising dos cidadãos). A taxa de participação baixou de 91,7 para 48,6%. A quebra foi sobretudo acentuada entre 1980 e 1999 (-22,3 pp) e entre 2005 e 2019 (-15,7 pp).
Figura 1
1.2 Tem uma baixa taxa de participação dos cidadãos nas eleições e na vida política
Portugal está atualmente entre os países da EU com mais baixa taxa de participação nas eleições parlamentares, segundo dados em torno de 2017 (Gráfico 2): Portugal (55,8%), Polónia (50,9%) e França (42,6%). Os três países com maior taxa de participação são a Bélgica, onde o voto é obrigatório (89,4%), Suécia (87,2%) e Dinamarca (85,9%).
Figura 2
O fenómeno da descida da taxa de participação nas eleições é comum aos Países da Europa de Leste e do Sul que experimentaram a democratização das suas sociedades. Porém, existe na EU um conjunto de democracias com longa duração onde a taxa de participação tem sido sustentada a alto nível, mesmo não sendo obrigatório o voto, onde a taxa de participação se tem mantido acima dos 80%.
1.3 Com baixo grau de satisfação sobre o funcionamento da democracia
O grau de satisfação com o funcionamento da democracia em Portugal está abaixo da média da EU, segundo a média do período 1985-2017, e utilizando os dados do Eurobarómetro (1=baixo, 4=alto). Os países nórdicos são os mais satisfeitos com a democracia, e os países da Europa de Leste os que registam graus de satisfação mais baixos.[1]
1.4 A apreciação da democracia está correlacionada com a situação económica
A evolução do grau de satisfação com a democracia em Portugal reflete a forte melhoria do rendimento per capita entre 1985 e 1992, que se interrompeu aquando da recessão de 92-93. Segue-se um período quase continuado de queda até à crise de 2010, quando se dá uma queda acentuada com o programa de austeridade. A partir de finais de 2013 inicia-se uma recuperação. Os índices de apreciação das instituições políticas (Governo e Parlamento) apresentam evolução semelhante, com recordes no início de 2018. No inquérito do ICS realizado em 2014 sobre os 40 anos da democracia, eram os grupos mais vulneráveis da população que apresentavam maior grau de insatisfação com a democracia, o que mostra que a apreciação dos cidadãos da democracia está fortemente correlacionada com a situação e evolução económica.
1.5 Grau de confiança dos cidadãos nos partidos políticos em Portugal é bastante baixo.
No período de 2000-2018 a média dos cidadãos que expressou a opinião de que confiam nos partidos políticos foi apenas de 16,7%, substancialmente abaixo da média da EU. É interessante que o grau de confiança é geralmente baixo em toda a União, com os países nórdicos, Holanda, Áustria e Luxemburgo a revelarem as percentagens mais altas, e os países do Leste da Europa e França entre os mais baixos.
Em termos de evolução histórica, o gráfico seguinte mostra uma evolução decrescente entre 2000 e 2014 e a recuperação a partir daquela data, consentâneo com todos os indicadores da apreciação política. Entre os outros países nota-se uma certa estabilidade a nível elevado da Holanda e Países Nórdicos, e o colapso na Espanha depois da crise global.
1.6 Primeiros-Ministros e chefes partidários escolhidos por número reduzido de cidadãos
Outro facto importante é também a base muito reduzida de militantes dos Partidos Políticos, e sobretudo de militantes ativos, que são quem escolhe os chefes partidários e que são os Primeiros-Ministros prováveis do País. Não faz sentido que o conjunto de escolha dos dois ou três políticos mais importantes para o País, seja escolhido por umas dezenas de milhares de votantes, em parte influenciados pelos dirigentes locais.
Em 2012, O PSD tinha 112 mil filiados, seguido do PS com 83 mil, o PCP aparece na terceira posição, com uma estimativa de 60 mil, o CDS-PP com 30 mil, e o Bloco de Esquerda com 10 mil. No total, o número de cidadãos ativos nos partidos representa apenas 2,8% do total dos votantes registados, e esta percentagem diminuiu fortemente desde a instauração da democracia.
Um trabalho recente do Observador contabilizou cerca de 30 mil votos para eleger em primárias o presidente do PSD e candidato a Primeiro Ministro nas legislativas de inícios de 2022. Mas, conforme este trabalho de campo revela, a escolha dos dirigentes distritais é fundamental na votação.
1.7 Tem um elevado grau de perceção de corrupção.
No índice da Transparência Internacional, que mede a perceção de corrupção, depois de ter subido da posição 35ª para a 29ª entre 2011 e 2017, caiu para a posição 33ª em 2020, estando abaixo de países como Uruguai, Chile ou Coreia do Sul.
Em conclusão, a qualidade da democracia tem falhas graves, e é percecionada pelos cidadãos como deficiente. Esta perceção estende-se desde as instituições, ao Governo como ao Parlamento, e sobretudo aos partidos políticos, que são os mediadores entre os cidadãos e o governo. Os partidos têm uma base reduzida de militantes e as escolhas de dirigentes, que determina a escolha do Primeiro-Ministro, figura central no Executivo, tem uma base de escolha ainda mais reduzida. Assim, a primeira grande conclusão é a necessidade de melhorar a representatividade do sistema e melhorar a participação e cultura política. A segunda conclusão importante é que a qualidade da democracia está intimamente ligada à performance económica do País, como se verifica em todas os regimes ocidentais. São exatamente em resposta a estes problemas que a Sedes procurou propor recomendações de reforma.
2 Breve diagnóstico dos falhanços das políticas económicas e implicações políticas
Vários estudos, já por nós aqui analisados, calcularam que políticas económicas erradas desperdiçaram recursos do País que poderia ter adicionado cerca de 1,5 ponto percentual ao ano, o que teria nas duas últimas décadas colocado a nossa economia a crescer 3% ao ano, e assim claramente convergir para a EU. Em 20 anos aquele adicional da taxa de crescimento teria levado a um PIB cerca de 35% mais alto! No nosso livro Regulação em Portugal (Alatheia, 2020), procurámos especificar e quantificar algumas das principais políticas que causaram uma alocação ineficiente de recursos, das quais se destacam a política energética e as políticas de financiamento da banca.
A aplicação de recursos sem retorno, seja em consumo público ou privado, ou maus projetos de investimento ou na manutenção de empresas “falidas” ou ineficientes, levou à extraordinária acumulação de dívida pública e externa, que não só provocaram a crise da dívida em 2011-2013, como continuam, e continuarão por largos anos, a limitar seriamente o crescimento económico.
Finalmente, o desvio dos recursos para aquelas aplicações, a manutenção de bloqueios institucionais e regulatórios, assim como as distorções a favor dos setores não transacionáveis criaram um ambiente hostil ao investimento produtivo privado que é o motor do crescimento da nossa economia.
Uma análise mais profunda da racionalidade política destas políticas está para além dos limites deste ensaio, mas podemos apontar que os governos das duas últimas décadas deixaram de colocar o crescimento e a convergência no topo das suas agendas, e que a alocação de recursos foi muito condicionada por grandes grupos de interesse empresarial, ou por grupos corporativos e sindicais, sobrepondo-se ao interesse do País.
3 Importância dos ciclos político-económicos
Estes factos e diagnósticos são relativamente conhecidos, mas menos enfatizado pelos economistas é a existência de ciclos político-económicos que mostram a importância para os votantes da situação económica, mas que, e é o reverso da medalha, contribuem para a visão de curto prazo dos governos.
Cavaco Silva ganha as eleições em 1985 e obtém subsequentemente duas maiorias absolutas, no período de expansão do ciclo que sucede à crise de 1982-1985, durante a qual Mário Soares foi o primeiro-ministro. As suas políticas pró-desenvolvimento, a entrada de Portugal na CEE e a expansão europeia, levaram a um notável crescimento e convergência (13 pontos percentuais). Mas seria a crise económica de 1993, que refletiu a crise europeia, que levou à vitória de Guterres em 1995. Este beneficia da recuperação subsequente e do sucesso da entrada no Euro. A crise tecnológica e o início da retração em 2002, para além da crise política originada pela demissão do primeiro-ministro perante o resultado das autárquicas, levaria à vitória de Barroso. Os governos de Barroso e Santana Lopes viveram um ciclo económico negativo, que só se iria inverter em 2005, já depois da crise política provocada por Sampaio. Os fortes desequilíbrios externo e do orçamento do Estado, que se iniciaram com Guterres, e acentuados pelas políticas de desorçamentação de Sócrates, acabam por originar a crise da dívida em 2011, depois da crise global. É neste período que se dá uma grande parte da má alocação de recursos, devido às políticas económicas e ao mau funcionamento do sistema bancário.
A crise da dívida leva à queda do governo de Sócrates. A intervenção da troika, e a aplicação do programa de ajustamento estrutural por Passos Coelho restauram os equilíbrios orçamental e externo, à custa do aumento da carga fiscal, corte na despesa pública e contração dos empréstimos bancários. Apesar deste sucesso, prevalece a narrativa de que a culpa da austeridade é do médico (PSD), e não das políticas anteriores. Costa aproveita o ciclo de recuperação nacional e internacional. Porém, apoiado na extrema-esquerda, as suas políticas de redistribuição, em grande parte hostis ao setor privado, comprometem o crescimento. Esta estratégia tem limites: o baixo crescimento cria insatisfação nas populações, fortemente debilitadas pela pandemia. A política de aumento do emprego público, dada a restrição orçamental, limita seriamente a subida dos salários no setor público e das transferências sociais, o que provoca a erosão dos apoios no funcionalismo público e reformados, a base de apoio eleitoral.
A conclusão é clara: a queda dos governos deve-se, em grande parte, à deterioração da situação económica, e os partidos que ganham beneficiam da fase de expansão do ciclo económico.
4 Conclusão
Nas últimas duas décadas a economia portuguesa registou um fraco crescimento e depois de se afastar da UE com a crise da dívida, ainda não conseguiu recuperar o nível de convergência do início dos anos 2000. Durante este período, o PS governou 192 meses contra 80 do PSD, com este último remetido a governar em períodos de crise. Até às eleições de 2015, a variação da taxa de desemprego durante o período da legislatura do partido no poder era um bom previsor da variação de votos do incumbente. As eleições de 2019 deveriam ter produzido uma vitória mais significativa do PS, o que representou uma rutura daquele modelo, o que poderá significar que os votantes passaram a considerar outras variáveis económicas, como o crescimento dos rendimentos, como variável importante da sua situação económica.
A evidência aqui coletada mostra que a situação económica na altura das eleições é uma variável fundamental na decisão de votar, o que significa que ao contrário do que muitos políticos poderão pensar, o crescimento económico é uma componente fundamental do seu bem-estar, e, por conseguinte, deve estar no topo da agenda de qualquer partido do arco da governação.
Num próximo ensaio veremos algumas das políticas de reforma do sistema político que poderão criar as condições para um maior crescimento económico de Portugal.
[1] Nestes países existe ainda uma elevada proporção da população, especialmente os mais idosos, que consideravam a sua situação económica melhor no regime socialista, onde existia um elevado nível de proteção social.