Estiquei o cabelo e coloquei os meus brincos mais espalhafatosos para uma visita ao supermercado. Não uma visita ao médico, mas uma visita ao supermercado, à loja ou, utilizando a tão corrente truncação, ao “super”.
Já não se vai às compras como quem vai à vizinha do lado pedir um raminho de coentros.
A saída de casa para o abastecimento da crescente massa gordural é tida como o momento alto da semana. E a indumentária para tal importante acontecimento é decidida, no mínimo, com uma noite de antecedência.
Não obstante, a lista de compras carece também de especial atenção, assemelhando-se à lista de convidados para uma grande cerimónia. Convidamos o pão, a manteiga, a batata e o café, ou seja, a família mais chegada sem a qual já não conseguiríamos sobreviver. Depois seguem-se os amigos de infância, as bolachas, o chocolatinho e o gelado, aqueles que nos acompanham desde os tempos de escola e cuja companhia nos relembra tão boas memórias passadas. Por fim, vêm os tios. Não os que nos são chegados, mas aqueles cujo paradeiro nos é desconhecido há muito e os quais apenas convidamos por uma questão de interesse. A saber: o bróculo, o espinafre, a alface e a beringela.
A ida ao supermercado tornou-se também num atentado à nossa paciência, que ao longo do último ano tem vindo a sofrer uma drástica diminuição resultante do isolamento social.
Após sete dias consecutivos de quarentena, confinados ao nosso pequeno espaço doméstico, torna-se contraditoriamente sufocante partilhar uma superfície de aproximadamente nove mil metros quadrados com um número agora exorbitante de 450 indivíduos. Um número agora estipulado que, apesar de rigorosamente calculado pelos especialistas, não nos impede de nos sentirmos sardinhas em lata.
Aqui transformamo-nos em seres intolerantes e impacientes. Há choques de carros e de feitios.
Em território de supermercado sumiu-se a igualdade social e existe agora uma clara distinção entre o “nós” e o “eles”.
Creio que todo este tempo isolados, condenados à nossa própria companhia, alheados dos modos de convívio de todos os outros indivíduos, nos leva a colocarmo-nos numa posição muito para além daquela que se nos encontra realmente destinada. Inocentemente, tornamo-nos em seres egocêntricos que tomam como unicamente correta e aceitável a sua educação. Assim se forma o “nós”.
Já o “eles” assemelha-se a uma espécie ancestral, cuja educação carece de especial atenção pelos piores motivos e cujas entoações, por vezes, se tornam incapazes de ser toleráveis.
Esperei uns exorbitantes 45 minutos na fila da peixaria apenas para comprar um único lombo de salmão. Numa situação normal, tal espera não se teria revelado incómodo algum. Em tempos de pandemia, no entanto, a fila da peixaria adquiriu o caráter de “prova ao respeito do distanciamento social”. Prova na qual, lamentavelmente, a maioria das pessoas parece chumbar claramente, pois, apesar de a ordem de atendimento ser regida pelo número da senha retirada, estas insistem em colarem-se o máximo possível umas às outras (não vá alguém meter-se no meio e roubar-lhes o lugar!). Deste modo, tal espera revelou-se um exercício físico para mim, que durante todo este tempo me obrigou a constante movimento, tentando manter uma distância relativamente segura.
Tal incómodo fora ainda prolongado pela senhora idosa que decidira levar metade da peixaria, insistindo em analisar minuciosamente cada ser marinho e exigindo a exímia preparação do mesmo.
O teste de resistência à minha capacidade de tolerância não se ficou por aqui. No corredor dos enlatados dei de caras com uma família aparentemente sofisticada, apologista do “tialeto”, cuja matriarca insistiu em vociferar o seu historial de relacionamentos para entretenimento de todo o supermercado. Como se tal não atraísse atenção suficiente, ela insistia ainda em obstruir a passagem, ignorando completamente todas as minhas tentativas para alcançar a polpa de tomate, exigindo a minha atenção como condição de passagem.
Há pressa em chegar, mas há também a pressa de partir. Deixo o supermercado mentalmente exausta e questionando-me sobre a ideia inconcebível de ter esperado, ansiosamente, durante uma semana, por esta visita. Aqui deixo a minha tolerância, a minha bondade e a minha educação, que espero restaurar por completo nos sete dias seguintes.