Ser teólogo é ser um artista. Alguém duvida disso? Talvez quem não saiba o que é ser um teólogo; alguém que não saiba o que é o amor; alguém que desconheça o que é viver co(m)-vivendo e co(m)-escrevendo ou co(m)-falando de tudo a partir do olhar do maior evento da história: a ressurreição de Jesus. Esse evento-advento que deu origem a uma revolução não-revolucionária [N.T. Wright] que recriou o ser humano e o próprio Cosmos em tons de um Céu omnipresente, inclusive naquelas pessoas e naqueles lugares onde menos ponderaríamos supor que Deus Se sentiria confortável [Umberto Eco].

O que é a consciência? Não sabemos, mas sabemos que não é algo da esfera biológica, pois dela não tratam os livros de Biologia. Mas está associada ao que se estima ser o primeiro grau ciente do conhecimento: o sensível. Aquele que, vislumbrando uma ordem dourada [Charles Péguy] no caos em que vivemos, convoca e concilia a imaginação e as perceções. Conciliação essa que, no amor, se manifesta na arte que lhe concede, no concreto, existência numa forma.

Face a isto, o artista é aquele que, se não for um diletante com um talento que não basta e se não se fizer escravo da voluptuosidade do efémero, estima aquela concretude e, dessa forma, se omite. Ser artista é não se dizer. É ser poroso ao que é mais do que a sua pessoa, dando-se na sua vida que é um canal sob o signo do nihil sibi, mas sem cair do Sol onde recusou ir buscar uma glória (ou manifestação do ser que é Amor) que, na Fonte, não lhe pertence. É acolher Alguém que, mera gente não sendo certamente [Fernando Pessoa], o ultrapassa infinitamente. É deixar-se recrear pelo Belo tocando assimptoticamente no Seu mistério para se deixar fascinar por Ele. É, por fim, esvoaçar com as asas do coração na libertação criadora de todo o ser que, de um lado, o inspira enamoradamente e, do outro lado e após o seu labor, maravilha o admirador [Jean Corbon].

A Beleza, assim e pelo artista, mostrar-se-á como penetrando a mais ínfima Realidade constituidora do real, enquanto iluminada pela Luz unificadora do que sendo difuso acaba por se reunir num archote que ilumina o esforço, a demanda, o amor, a liberdade e a demanda do Infinito. E isto, pelo apurar do artista que reconhece que o êxtase é o único viver e que, desse modo, ele próprio existe no Amor que Se mostra escondendo-Se (e vice-versa) [Máximo o Confessor]. Ilumina. Sem dúvida. E ao fazê-lo, naquele conjunto de elementos, projeta, ao por eles formar sombras ainda mais luminosas [Gregório de Nissa], raias deslumbrantes onde o coração ama e serve.

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Usei, mais acima, o termo “arte”. Suponhamos existir algo a que possamos denominar por tal vocábulo, que é sempre menor do que esse algo e até do que o conceito que o pretende significar. Dito de outra forma: façamos fé que a arte não é uma projeção compensatória das nossas aspirações ou medos. Pois bem, para que a arte exista, é necessário que os vetores exteriores correspondam a uma espécie de tremores íntimos – da ordem do pneuma-espírito e não da alma-psiquê – que tocam no inconsciente e se corporalizem, com ou sem matéria, em impressões sensitivas.

Note-se que o inconsciente não é o tudo na inspiração, o qual precisa de ser procurado num sobreconsciente que está sempre aberto ao verdadeiro, à bondade, à beleza e à alegria. Ou seja: aos afetos de vitalidade da Fonte eterna dos quais estão sustentados. A arte, por conseguinte, alude a um mais-além no mais-íntimo que já não é o artista, mas um Abismo de Amor com que se deve ter uma relação de contacto contemplativo. Eis a arte a ser uma genuína aura de mistério que, no caso presente do teólogo, o faz ser uma pessoa transparente ao Belo e que não finge ser fingidor [Gerard Manley Hopkins] enquanto vive a deambular ao redor das extremidades de tal Abismo que todos devíamos ver. Artista (o teólogo), pois, na edificação do humano à imagem do Homem por antonomásia: Jesus; Aquele em Quem toda a natureza humana é contemplada à maneira de uma pessoa universal [Teodoro o Estudita], revelando, assim e paradoxalmente, o rosto verdadeiro de cada um de nós.

Esse ver é o caminho espiritual para a felicidade eterna. Aquela que já se encontra em todos os locais onde o teólogo anda ao ser artista no sentido que fui expondo. Os locais onde o teólogo trabalha com (e desde) os pés no chão e ganha o cheiro ao ser humano todo, sem nojo nem cativação, e a todo o ser humano, seja este quem for. Aqueles “ondes” abrangentes, sim, mas preferentemente os mais doentes, vulneráveis, cansados e desabridos onde se luta na miséria e aos quais, por vezes, não se quer descer. Para quem não enceta esse descer, todos somos povo, um só povo, mas com uns sempre acima dos outros [Charles Williams]. Problema de ótica, sem dúvida, pois tudo está no olhar.

Aquilo que dá valia ao humano, que o teólogo tão devia viver e conhecer para comunicar, é o “ver”: o “ver” no íntimo das coisas, das situações e das pessoas que, quando vistas naquela profundidade, são sempre e já uma manifestação do sorriso de Deus. Um sorriso, que é o fim de toda a miséria [William Blake] e totalmente distinto do do gato Cheshire [Charles Dodgson], que, quando pressentido, deve ser seguido para se ir ao fundo. Esse fundo onde se reconhecerá que ver é amar em profundidade e amar é ver com a mesma profundidade.

Claro que o teólogo enquanto artista reconhece que o supraconsciente antes aduzido é a luz divina no mais íntimo da sua pessoa [Tomás de Aquino]. Essa luz da Luz que não se pode apreender, mas apenas receber. Mas como recebê-La? Difícil, não? Sim. Difícil. E esta realidade porquanto estamos demasiado tentados pelo extraordinário, pelo invulgar e pelo incomum, parecendo ignorar que tudo isto é o extra-Deus (o fora de Deus) e o não-Deus (o não Amor) – porquanto Deus é o mais ordinário, vulgar e comum que existe.

Se Deus quis viver “à humano”, fazendo-Se um de nós em tudo o que somos exceto no ter sempre vivido a amar, isso não foi senão para, dando-Se num mordicar de paixão como entre os apaixonados, nos colocar em contacto com Pessoas e pessoas vivas. Face a estas últimas, as humanas, o teólogo só deve ter uma preocupação: ensiná-las a amar de modo autêntico, com um cuidado, rigoroso mas sem rigidez, traduzido numa linguagem portadora de significado e sentido para elas. E isto, até que tais pessoas, dando e doando-se até ao perdoarem-se entre si, possam viver em celebração o mistério da morte vivida. Um mistério que é uma ressurreição, não para depois, mas para dentro, pois o Céu está em nós [Michel Cornuz]. Um Céu no qual não se entra, mas se metamorfoseia.

Sem isto, ser-se-á um teólogo chiquemente e vai-se acabar por resvalar, não para a arte nem para a missão de ser um artista, mas para a anti-arte e o anti-artista. O motivo? Tender-se-á a não viver para os demais, antes a guardar tudo para si. E qualquer célula de um corpo que realize isto (des)converte-se num quisto. Em algo que será rejeitado – numa imagem do egoísmo que sorve do veneno do mysterium iniquitatis que despersonaliza até se existir a viver morrendo (de fome) por não se amar.

Nada, pois, desse teólogo lograr respirar o Espírito (a Pessoa da Beleza) e, assim, nada de ser: “atento no experiênciar”; “inteligente no compreender”; “razoável no julgar” e “responsável no decidir” [Lonergan]. E isto, numa recusa seja da metodologia teológica, seja da necessária conversão contínua da sua pessoa em cada vez que: atingir um novo zénite ou nadir; se vir mergulhado no âmago do silêncio; as horas se tornarem tão densas como o sangue. Conversão, sim, mas sem se preocupar consigo (o que seria sempre um fugaz voltar-se sobe si psicológico), antes com o humanizar os demais no seu ser um artista que cura sem salgar.

A paixão não passional do teólogo enquanto artista não é a busca ansiosa da Beleza divina, mas o pedir algo ao sujeito a quem está a orientar e a moldar (mas sem o controlar) à imagem de Jesus no fio de uma autenticidade que é santidade. A saber: que ele viva de forma a representá-La, mediante o teólogo tudo fazer para que ele reviva Deus, amando esse sujeito até uma Cruz de estiramento do “ego” artístico (no que é a única garantia desse amor). Teólogo. Artista. Sim, por mais que seja uma presunção. Sobretudo porque todo o teólogo, que o deveras queira ser, sabe que só o será se mantiver a forma Christi [Fiódor Dostoiévski], inclusive quando o que vê lhe fecha os olhos como se um defunto fosse, pois estará a ver o que todos deveríamos ver: o recrear de tudo na liberdade, na honra, no amor, na alegria.