Quando, nesse longínquo tempo que foi outubro de 2022, o país descobriu, espantado, que o secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro estava a ser investigado pelo Ministério Público por causa de um contrato-promessa que celebrou quando era presidente da Câmara de Caminha, António Costa desvalorizou, como sempre. Apareceu aos jornalistas com as costas direitas e um sorriso solto e informou que mantinha a confiança no seu braço direito — “com certeza”.

Dias depois, a 5 de novembro, descobriu-se que, afinal, Miguel Alves não era arguido apenas num solitário processo, mas em dois, como quem procura desesperadamente fazer linha no bingo. Mais uma vez, António Costa não se impressionou. E havia razões para isso: é que esta dupla condição de arguido já era conhecida do primeiro-ministro quando Miguel Alves foi escolhido para o governo e apresentado à Nação a 16 de setembro, tendo o Presidente da República como testemunha numa tomada de posse transmitida pela televisão. Na altura em que o convidou, António Costa recebeu esta informação com a mesma indiferença que reservaria para a revelação de que o seu secretário de Estado Adjunto estava acometido de sarampo.

Só a 10 de novembro, quando Miguel Alves passou de arguido a acusado, é que as coisas mudaram. Mas não por ação do primeiro-ministro. Quem tomou a iniciativa de terminar aquele arranjo foi o seu secretário de Estado Adjunto, que apresentou a demissão por sentir que tinha finalmente chocado contra uma parede, mesmo que metafórica. Sempre indiferente aos incómodos judiciais dos seus subordinados, António Costa limitou-se a aceitar, contrariado, a decisão de Miguel Alves. Afirmou, tristonho, que “percebia bem” o estado de espírito do correlegionário. Num derradeiro suspiro de resistência, o primeiro-ministro ainda insinuou uma conspiração, lamentando a “originalidade” de Miguel Alves ter sabido da acusação pela comunicação social.

A 18 de janeiro de 2023, a secretária de Estado da Agricultura, Carla Alves, que tomara posse escassas 24 horas antes, apresentou a demissão por se ter descoberto que tinha uma conta bancária arrestada na sequência de um processo judicial que envolvia o marido. Mais uma vez, não foi demitida: demitiu-se. E não se demitiu logo: demitiu-se apenas depois de uma pressão pública do Presidente da República. Quanto a António Costa, aproveitou as primeiras notícias sobre o caso para se exibir no Parlamento como um herói do feminismo, clamando: “Vou demitir uma mulher porque o marido foi acusado?”.

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Em abril, um agente do SIS decidiu levantar-se da cadeira e, à meia-noite, numa rua de Lisboa, encontrar-se com um adjunto rebelado do Ministério das Infraestruturas para recuperar um computador de serviço, comportando-se como um polícia de giro da esquadra da esquina. Contra o bom senso, contra a aparente vontade do ministro em causa e, principalmente, contra o Presidente da República, António Costa concluiu que nada do que se tinha passado justificava a demissão do sempiterno João Galamba — passando assim, novamente, a mensagem de que as fronteiras que mantêm alguém no governo podem ser infinitamente elásticas.

Em julho, depois de várias semanas de informações e suspeitas, Marco Capitão Ferreira apresentou a demissão do cargo de secretário de Estado da Defesa. Não o fez por causa das informações. Não o fez por causa das suspeitas. E, decididamente, não o fez por sugestão ou imposição do primeiro-ministro. Marco Capitão Ferreira apenas deixou o governo, por vontade própria, no minuto em que a polícia lhe bateu à porta com um mandado de busca relativo a um caso que envolve suspeitas de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais.

Finalmente: esta semana, o chefe de gabinete de António Costa foi envolvido no processo do Data Center em Sines. Mas isso não provocou grande comoção no primeiro-ministro, que o manteve firmemente no cargo, apesar de ter passado de suspeito a arguido e de arguido a detido. Vítor Escária só foi demitido quando, no dia seguinte, se soube que o Ministério Público tinha encontrado 75 mil euros em notas escondidas no gabinete que ocupava na residência oficial de São Bento, numa atípica demonstração de capacidade de aforro.

Durante estes longos e penosos anos de maioria absoluta, António Costa mostrou, uma e outra vez, que ser suspeito, ser arguido, ser alvo de buscas ou ser detido não era obstáculo à continuação de uma carreira política sob o seu patrocínio. Por isso, mesmo os mais distraídos poderiam há muito ter descortinado a verdadeira natureza deste governo. Bastava aplicar o chamado “teste do pato”, que é utilizado para “compreender a natureza verdadeira de um sujeito desconhecido observando as caraterísticas prontamente identificáveis do sujeito”. O “teste do pato”, habitualmente, resume-se assim: “Se anda como um pato, se nada como um pato e se grasna como um pato, então é porque é um pato”.