Foi num sábado solarengo de outono que tive o privilégio de visitar a Ganadaria de Murteira Grave, Galeana.

A origem do nome foi das primeiras coisas que me suscitou curiosidade. Galeana, diz a lenda, era uma linda princesa árabe, por quem todos se perdiam de amores, que vivia por bandas de Toledo e que se enamorou por um forasteiro que por ali passou e por quem deixou tudo para poder viver esse amor! Amor! É ele que está na génese do nome Galeana. Amor, beleza, nobreza… Não podia ser mais adequado o nome, face ao que ali experienciei: o amor a um sonho e a um modo de vida! A vida do Touro Bravo!

Ali, na Galeana, respira-se amor ao mundo rural. O mundo rural que existe, ali, na periferia do interior do país, ali, na raia, onde Portugal se confunde com Espanha. Ali, respira-se campo!

A paisagem constrói-se num mosaico entre o montado de azinho e o xisto que rasga a terra e que lhe retira fecundidade, concretizando-se num ecossistema onde os equilíbrios se jogam entre a aridez da margem esquerda do Guadiana e a vitalidade da natureza, que sempre floresce em primaveras exuberantes e onde a vida se renova a cada novembro.

No campo, naquele campo, o touro bravo é rei. O guardião da biodiversidade daquele imenso campo. Vive livre. Vive plenamente a sua natureza de animal bravo. Durante quatro a cinco anos, o touro bravo vive como um animal do campo, que aí nasce, vive e se prepara para aquele que é o seu propósito – o combate leal na arena, cuja bravura encanta e emociona, pilar de um código de conduta onde a honra, a coragem e a lealdade sustentam toda uma afición.

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O touro bravo não é um boi. O touro bravo não existe para apoiar o homem no trabalho. O touro bravo não existe para engrossar fileiras no matadouro, para nos alimentar.

O touro bravo só existe, porque a tauromaquia existe. O touro bravo só será touro bravo, enquanto a sua dimensão cultural existir. O fim dessa dimensão cultural decretará a extinção do touro bravo. A razão da sua existência é essa. Essa é a sua função.

No campo, no mundo rural, o animal tem sempre uma função. Seja o trabalho, a alimentação, a proteção ou guarda, o equilíbrio natural do ecossistema.

Veja-se a minha avó materna, de quem tenho memórias maravilhosas. A minha avó sempre viveu no campo. Ela criava patos, galinhas, borregos, porcos… e tinha gatos e cães. Destes, a sua preferida era a cadela pastor alemã, Liberdade, que vivia acorrentada durante o dia a uma oliveira, sempre com água fresca e sempre bem alimentada, a quem a minha avó dava uma festa de vez em quando, normalmente ao cair da noite, quando a ia soltar para que cumprisse a sua função – guardar o monte.

Naquele monte, todos os animais tinham uma função. Não tinham direitos. Tinham funções. Os gatos serviam para apanhar os roedores e répteis, os primeiros davam cabo dos melões que a minha avó guardava, religiosamente, até ao Natal, para que os filhos e netos pudessem ter melão na ceia de Natal, e os segundos, comiam os pintainhos ou os ovos que tanto gostava de criar e oferecer. Os cães serviam para a caça e para guardar o monte. Os porcos, para a matança, que acontecia todos os anos, em novembro ou dezembro, para que os filhos ficassem com carne boa! Caseira e saudável, como dizia a minha avó. Os borregos, eram para vender na Páscoa, a cultura e a religião ditavam isso e, claro, para consumo da família. As galinhas, os patos, os coelhos alimentavam a família com a tal carne saudável, os ovos, caseiros, eram perfeitos para os doces e bolos…

No campo, naquele monte, os animais eram tratados como animais. A rua era para eles. A casa para nós. Mas eram muito importantes. Tinham de ser bem tratados. Alimentados com os melhores legumes, com as melhores farinhas e o seu espaço/habitat estava sempre impecável.

Não dormiam connosco. Não comiam connosco. Não estavam na sala, ou no sofá, connosco. Mas eram muito bem tratados.

Isto é o mundo rural. Este mundo rural onde os animais têm funções. Não têm direitos. Mas onde nós temos o dever de os tratar bem, de lhes proporcionar as condições de vida adequadas à sua finalidade e de preservar o seu bem-estar, animal.

O mundo rural é o mundo do touro bravo. O mundo rural não se compadece desta tentativa de colonização intolerante e, não raras vezes, ignorante e sobranceira, pelo mundo urbano.

O mundo rural existe e tem o direito de existir na sua plenitude, ainda que o mundo urbano seja, cada vez mais, a maioria e o mundo rural a minoria. Ainda que o mundo rural esteja cada vez mais isolado e o mundo urbano preenchido. Ainda que o mundo rural não seja valorizado, esteja velho e ao abandono e o mundo urbano seja idolatrado.

A “urbanização” das relações e equilíbrios existentes no mundo rural não mais é do que um ataque à identidade de muitos portugueses. Àqueles que ainda insistem em viver no campo. Àqueles que ainda insistem em não abandonar o campo. Em participar na manutenção e equilíbrio desse ecossistema que, espantem-se, é fundamental para sustentar o mundo urbano.

No mundo rural há cultura. No mundo urbano há cultura. Igual ou diferente, mas sempre cultura.

Cultura é uma palavra de difícil definição, aliás, acho que é mesmo aí que reside a sua magnitude, não ser suscetível de uma única definição. Mas há uma coisa que conseguimos definir facilmente: ACULTURAÇÃO – palavra que se usa para designar as mudanças que podem acontecer numa sociedade diante da sua junção com elementos culturais externos, geralmente por meio da dominação política, militar, territorial ou religiosa. É isso que o mundo urbano dos porquinhos criados em T2, ou dos lagartos passeados com trela no jardim da cidade, ou dos gatos abandonados em apartamentos e deixados à fome…, quer fazer com o mundo rural e com o touro bravo.

Não sou aficionada. Mas sou, ou tento ser, informada.

Fui visitar a Galeana. Ainda bem que o fiz. Fui a algumas touradas, ainda bem que o fiz. E, porque o fiz, tenho a certeza que a minha querida avó, onde quer que esteja, estará muito orgulhosa de mim, pois continua a ver na sua neta de 48 anos, a miúda aguerrida, mas tolerante, adepta ferrenha da justiça e da liberdade e sim, sempre, amiga dos animais!

E, sim, aprendi que o touro bravo não é um boi, nem é um animal de estimação, nem é um animal doméstico ou selvagem. É um animal livre, bravo e nobre, que tem uma função onde a ecologia e a cultura se fundem, naquilo que é a defesa da sua preservação e salvaguarda.