Vai o governo colocar um travão ao aumento das rendas em 2024? — esta é a pergunta do momento. Está por todo o lado. Note-se que a reivindicação do travão ao aumento das rendas sucede ao extraordinário travão ao aumento do preço das cebolas, das cenouras e da pescada, que por sua vez pressupunha o travão aos lucros da grande distribuição e já agora também da média e quiçá da pequena. Afinal a cada sector de actividade que não se comporta segundo o previamente estabelecido na quadratura estatista que nos rege espera-o um travão. O simples alertar para um provável aumento do preço pode gerar a fúria governamental, como aconteceu quando, pouco depois do início da guerra na Ucrânia, o então presidente da Endesa, Nuno Ribeiro da Silva, avisou sobre o aumento do preço do gás.

Quando o travão falha apela-se a Bruxelas para que esta imponha um travão alargado, como fez agora António Costa ao apelar a Bruxelas para «Estancar o “ braindrain”». Desde já agradeço aos leitores que decifrem o que pretende o Governo português com este seu apelo a um travão, pois o texto é uma espécie de descrição de soma nula: “No decurso do Ano Europeu das Competências, a União deve envidar esforços para conter a perda e transferência de capital humano altamente qualificado, de modo a evitar a “fuga de talentos” e rentabilizar o investimento envolvido nos percursos educativos dos cidadãos europeus, bem como manter a competitividade e coesão no seio da União Europeia, enquanto espaço de inovação e desenvolvimento científico e tecnológico, sem prejudicar a liberdade de circulação e realização pessoal.

Na verdade eu leio e releio e não entendo (sim, já sei que não sou um talento, mas garanto que sou uma boa leitora): pretende o Governo português travar a fuga de cérebros dentro dos países da UE ou para fora da UE? E como “sem prejudicar a liberdade de circulação e realização pessoal”? Pondo Bruxelas a pagar-lhes mais, como se tudo se resumisse a uma questão salarial?

Esta fé nos travões à realidade é o resultado do falhanço do acto de governar em si mesmo: travar a fuga dos talentos é o que se faz quando se desistiu de lutar uma por sociedade em que os talentos queiram viver e criar. Tenho para mim que o Governo também não acredita particularmente neste travão à fuga de talentos, mas, tal como faz com a habitação, pretende transferir para Bruxelas a responsabilidade para não ser responsabilizado pelo seu falhanço. E note-se que o Governo já tem muitos travões a que acudir.

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Para quem não tenha reparado, boa parte da actividade governamental centra-se em resolver, através de compensações e recuperações, os problemas gerados pela aplicação de travões às consequências da legislação que o mesmo governo aprovou. Veja-se o acontecido com as rendas de casa em que já vamos no travão ao travão pois logo à partida não se admite que não exista um travão. Tem de haver um travão pois acredita-se que, caso não existisse esse travão a definir como são aumentadas as rendas no ano seguinte, o mercado por si mesmo entraria em descontrolo. O problema é que agora é o próprio travão a ter de ser travado: em 2023, segundo a legislação criada pelo Governo, as rendas deveriam ter sido aumentadas em 5,43%. Mas não foi isso que aconteceu: foi aplicado um travão. Ou seja as rendas aumentaram apenas 2%. Quanto aos restantes 3,43 % a que os senhorios tinham legalmente direito foram compensados no seu IRS. Para o próximo ano a actualização deverá ser segundo os critérios legais de 6,94% e como é óbvio a invocação do travão não sai dos títulos, sucedendo ao senhor Rubiales no lugar de assunto incontornável. Não é de excluir que cheguemos aos três travões: o primeiro a estabelecer como se podem aumentar as rendas; o segundo a travar aquilo que o anterior travão dispõe e o terceiro a particularizar a aplicação do segundo e assim sucessivamente. Também tivemos, e muito provavelmente voltaremos a ter, a polémica em torno do travão ao aumento das portagens, a que se juntou essa espécie de corrida de karts em que está transformado o cálculo das pensões, com os travões mascarados de truques. 

Das rendas de casa ao preço da alface frisada, passando pela fuga de cérebros, tudo deve ser travado enquanto, e não por coincidência, se acelera a caminho do social-assistencialismo dos que são beneficiados pela lei travão e dos que são ressarcidos pelos prejuízos (ou parte deles) que sofrem com a aplicação da mesma lei travão. Quase invariavelmente estas travagens acabam em despistes contra o muro da realidade duma sociedade infantilizada que acredita que existem auto-estradas sem custos para o utilizador, que as casas para arrendar aparecem por decreto e que os preços do que consumimos são aquilo que o Governo decidir.

O travão é a nova alavanca, ferramenta símbolo da construção do socialismo.